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03 novembro 2018

O SERTÃO E A MAGIA DA BOCA DA NOITE

*Rangel Alves da Costa

Neste momento estou em Poço Redondo, no sertão sergipano. Aqui, sem qualquer dúvida, o retrato mais expressivo do ser e do viver sertanejo. Mas não estou a passeio nem sou visitante ocasional, pois nasci aqui e até os onze anos por aqui permaneci como um calango na sua terra. Mas não abdiquei do berço de nascimento. Todos os finais de semana eu risco no seu chão como um alazão que chega afoito por mais viver.
É momento de entardecer sertanejo. Já é boca da noite, como se diz por aqui. E é na boca da noite que as cozinhas espalham os aromas de cuscuz, de tripa de porco, de toucinho, de carne seca, de ovos de capoeira, de café torrado ou empacotado. A mesma logo será posta, o menino mastigará o seu pão, a dona de casa se dará por satisfeita se a comida disponível deu ao menos para enganar a fome. Depois disso a noite cai de vez, a lua se faz maior e mais brilhosa, os noturnos se perfazem na singeleza sertaneja.
Sou conhecedor e admirador de tudo isso. Contudo, mesmo sentido perto de mim todo esse encantamento da chegada da boca da noite, algo me leva ainda mais longe ou mesmo pelos arredores de onde estou. Logo ali já é mato, já é a pequena propriedade, já é o casebre, já o sertão em seu estado mais natural. E fico imaginando daqui a magia que é a chegada do anoitecer naquelas localidades mais distantes e onde a noite praticamente termina logo após o noturno café.
Talvez por que a vida dos sertanejos das regiões mais afastadas seja mais cansativa pelos labores cotidianos debaixo do sol, a verdade é que depois da janta já é chegada a hora de fechar as portas. E nos tempos idos nenhuma porta era avistada aberta depois das sete da noite. Quando muito, apenas alguns amigos em proseado numa malhada ou noutra, uma mulher debulhando milho ou alguém dedilhando uma saudosa viola.


Atualmente, mesmo com as televisões já estando presente mesmo na maioria dos casebres e casinhas de cipó e barro, somente os mais jovens se demoram mais vendo novelas. O autêntico sertanejo não. Avista, quando muito, o noticiário e já se dá por satisfeito. Depois vai até o lado de fora acender seu cigarrinho de palha, avistar a lua grande, meditar sobre a vida e sobre o mundo ao redor, tentar avistar nuvem de chuva, mas nada disso por muito tempo. Não demora muito e já estará se recolhendo para o adormecimento dos justos. Ora, antes mesmo de o galo cantar já estará novamente em pé e pronto pra luta.
Nos tempos dos candeeiros – e sem geladeira, televisão, eletrodomésticos – a singeleza da vida sertaneja era ainda maior. Muitas vezes sem vizinhos por perto e com poucas palavras para serem partilhadas entre os da casa, a noite fechava mesmo após a última xícara de café. Quem passasse pelos arredores só avistava, quando muito, a luzinha fraca e amarelada dos candeeiros e lamparinas pelas frestas da janela. E um pouco mais tarde, como economia de gás, até mesmo as chamas eram apagadas. E o silêncio e a escuridão sertaneja se abraçavam em terna e afetiva comunhão.
Lá fora, apenas um ou outro barulho fazendo barulho, vaga-lumes passeando pelos arredores, açoites de vento trazendo folhagens. Uma coruja pia, um grilo faz seu contínuo canto. Os sonhos navegam. Os sonhos aportam e singram no mundo-sertão de secura e de sol afoito.

Escritor
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02 novembro 2018

ALUMIANDO A VIDA

Clerisvaldo B. Chagas, 2 de novembro de 2018
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica: 1.998

Dona Zifina cortava flandres. Fazia candeeiro. Seu Tô, com chapéu raro de Polícia Montada, retelhava casas; Salvino consertava sombrinhas; Silvino manejava o serrote: roc-roc; Pé-Espaiado era ferreiro; Zé Gancho trabalhava o Zinco; Otávio Magro vendia carne-de-sol e Dona Maria Néris rezava o ofício de Nossa Senhora. Manezinho Quiliu, vindo de Olivença, mexia com bicas; Gérson batia sola; Maria Lula vasculhava casa; Zé Preto negociava bugigangas; Seu Né cubava terras; Flora vendia esteiras; Seu Antônio e Seu Quinca eram alfaiates e, finalmente, Zé Limeira fazia malas. Não éramos uma Grécia, mas bem que a Rua Antônio Tavares e arredores funcionavam como tal.
CANDEEiRO. (FOTO: ANALISE AGORA).
Josefina, dona Zifina, de voz metálica e artesã dos flandres, confeccionava candeeiro, canecos, aros de óculos: Rats, rats, rats, trabalhava a tesoura pesadona nos dedos ágeis da avó de Oscar Silva, futuro escritor. E numa terra que passou quatro anos no escuro, o candeeiro, a placa, a candeia, eram bênçãos divinas nas noites tremendamente escuras do Sertão. Santana do Ipanema precisava do Ferreiro, era ali pertinho. O sapateiro, o barbeiro, o menino de recado... Tudo estava ao alcance de um grito forte de sertanejo. E assim deslizava o tempo tão devagar quanto o carro de boi de Lero Carreiro. E quando o vento forte fazia redemoinho, a meninada encintava o vento: “Rapadura! Rapadura!”.
Durante as noites de lua, gente nas calçadas enroladas em lençóis, contando histórias de Trancoso, de almas penadas, fazendo adivinhações, identificando as estrelas. O ferro em brasa nas janelas, levando as cinzas do carvão. Candeeiro aceso na força do querosene, do gasóleo. Aqui, acolá, a passagem tardia de um malandro de jogo; um sopro forte no ferro de engomar; Uma golada d’água da quartinha com tampa de pano bordado, na janela tomando fresca.
Benditas mãos que confeccionavam as candeias de latas e nos tiravam do escuro.
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01 novembro 2018

REVELAÇÕES AO ENTARDECER

*Rangel Alves da Costa

Estou desconhecendo a mim mesmo. Nunca mais caminhei pelas estradas e ruas, de pés descalços, pelo prazer de pisar na terra, sentir o calor do chão e estar mais aproximado do mais puro ventre.
Estou entristecido comigo mesmo. Nunca mais abri a janela para esperar borboletas, para a chegada de colibris nem pássaros do amanhecer. E sei que agora me falta aquele sorriso da flor e o beijo da brisa do amanhecer.
Estou me sentindo desumanizado demais. Chego a me perguntar se não perdi a sensibilidade, se não desacalantei o amor pelas coisas simples, se não reneguei o prazer pela jabuticaba e a sapoti de quintal.  E tão doce era beijar a boca do araçá.
Estou me distanciando de mim mesmo. Temo ter deixado ir embora a criança que sempre esteve em mim, o menino traquina que sempre gostou de brincar e de sorrir. Temo que até a memória e as doces lembranças e nostalgias tenham se distanciado de mim.
Estou me tornando cada vez mais insensível, e eis o medo maior que dá. Não desejo a lágrima petrificada nem o soluço preso, não quero olhos sem brilho nem coração que não pulse mais perante as situações de vida. E tudo parece simplesmente acontecer.
Estou sem tempo para as coisas boas da vida, estou sem encorajamento para reencontrar as coisas boas da vida. Nunca mais sentei na pedra, nunca mais conversei com a pedra, nunca mais deitei no colo da pedra e sonhei com um jardim florido e perfumado.
Estou envelhecendo demais sem ainda ter alcançado os portais da velhice. Imagino que os espelhos vão me negar o sorriso, penso que os espelhos vão acrescentar minhas rugas, imagino que de repente já serei outro, triste e alquebrado, num corpo apenas cansado.


Estou sem tempo de fazer o que sempre fiz mesmo sem ter tempo. Sempre encontrei um instante para subir à montanha, para sentar à beira das águas, para me aquecer com as brasas do pôr do sol. E sequer tenho tido tempo de olhar o horizonte e imaginar o que está além e mais além.
Estou sem tempo de pensar nas coisas boas da vida, de trazer ao pensamento o que sempre me confortou, ainda que com saudades. É como se o sabor do café torrado já não mais esteja na minha boca, é como se o perfume do café na chaleira já não estivesse ao meu alcance.
Estou sem auroras e entardeceres que realmente sejam auroras e entardeceres. Não adianta apenas acordar, levantar e caminhar pelo quarto, sem que pule a janela e vá logo beijar a primeira luz e o primeiro sol. Não adianta chegar ao fim da tarde e perante o pôr do sol apenas fingir que o avista.
Estou sem tempo para mim, sem tempo para ser eu mesmo, sem tempo para fazer o que gosto e o que me faz bem. Preciso conversar com o vizinho, falar com as pessoas que passem adiante, sentar na calçada e conversar sozinho. Preciso jogar pedrinhas no meio do nada e riscar o chão com uma varinha qualquer.
Preciso chupar picolé de graviola, de coco e mangaba. Preciso pedir um algodão doce e uma maçã do amor. Preciso de pipoca colorida e de cocada de rua. Preciso piscar o olho pra menina bonita que passa de flor vermelha no cabelo. Preciso beijar a palma da mão e depois lançar o beijar em qualquer direção.
Preciso riscar o tronco da madeira e nele desenhar coração. Preciso escrever versos rimando amor e bilhetinhos com letras miúdas e implorando ao menos um olhar. Preciso ler um livro do começo ao fim e depois reescrever o mesmo livro do fim ao começo. Preciso abrir a janela. Preciso abrir a porta.
Preciso também de um sorriso e de um espelho que não negue as verdades, mas que não doa tanto nas suas verdades.

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28 outubro 2018

EX-VOTOS (O CANGAÇO E OS MILAGRES SERTANEJOS)

*Rangel Alves da Costa

Difícil imaginar, mas na Estrada de Curralinho, nas distâncias sertanejas de Poço Redondo, um inusitado local de beirada de estrada serve como exemplificação maior de como a fé do povo transforma um cenário de vingança sangrenta em local de local de fé. Debaixo de um pé de pau estão fincadas duas cruzes de soldados mortos em agosto de 37 pelos homens comandados por Corisco numa vingança perpetrada contra a morte do cangaceiro Pau-Ferro.
Sisi e Tonho Vicente, soldados que serviam no destacamento policial do distrito de Poço Redondo (e que nada tinha a ver com a força policial que atirou contra o cangaceiro), foram emboscados e mortos. Depois disso, a concepção sertaneja de ”malvadeza cometida contra inocentes”, fez com que o local se tornasse em verdadeiro santuário de adoração e de pedido de curas. Segundo relatos, muitas curas já foram conseguidas através da intercessão das Cruzes dos Soldados.
Prova maior são os ex-votos deixados no local. Ex-votos (que significa “por força de uma promessa”) são oferendas deixadas no local como forma de agradecimento pelas graças alcançadas. E ali, ao redor das cruzes, mãos, pés, membros, tudo em madeira, mostrando que mãos foram curadas, pés foram salvos, membros retomaram suas forças. Assim a fé do povo. E não há como negar a crença pelo milagre.
 Como dito, tudo teve início com uma vingança cangaceira. A morte do cangaceiro Pau-Ferro gerou um revide tamanho que até hoje as cruzes da estrada de Curralinho testemunham aquele troco de sangue. Tudo começou na Fazenda Quiribas, em Poço Redondo. Um grupo de cangaceiros, dentre os quais Corisco, Mariano e Zé Sereno, repousa tranquilamente nos arredores de um riacho quando é avistado pelo soldado Miguel Feitosa, ali apenas de passagem. Retornando imediatamente, o militar avisa ao comando sobre o ocorrido.
Um pequeno agrupamento militar é formado e segue em direção ao coito. Ao chegar ao local, logo percebe que o pequeno número de soldados sequer pode assustar aquele grande numero de cangaceiros. Então decide recuar. Recuou, mas já distante - e fora do alcance da cangaceirama - dois soldados resolvem atirar na direção dos cangaceiros. Um tiro acaba acertando e matando o cangaceiro Pau-Ferro.


Foi a motivação para que a fogueira se tornasse em odiosa labareda. A cangaceirama correu no encalço da soldadesca, porém sem alcançar. Mas a vingança estava jurada, não demoraria muito para que os homens da caatinga farejassem os culpados pela morte do companheiro e dessem o troco merecido.
Mas a vingança foi feita em dois que sequer haviam participado daquele episódio. Os soldados Tonho Vicente e Sisi destacavam na povoação de Curralinho, naqueles idos de 1937 um lugarejo ribeirinho próspero e porto principal da chegada e partida de todo tipo de mercadoria daqueles sertões de Poço Redondo, então distrito de Porto da Folha, quando de lá partiram na companhia de outro soldado, Miguel Feitosa, aquele mesmo que havia informado sobre a presença do bando.
Chegando de canoa de Propriá, Miguel Feitosa certamente desembarcaria no porto de Curralinho e logo tomaria a estrada normal, sempre utilizada por todos, para chegar a Poço Redondo. Contudo, imediatamente foi avisado que daquela feita não fosse de jeito nenhum pela conhecida estrada, pois a cangaceirama estava por todo lugar. E foi por isso que buscou a companhia protetora dos soldados Tonho Vicente e Sisi.
No dia seguinte, segunda-feira, Tonho Vicente e Sisi se prepararam para retornar e, dessa feita junto com alguns feirantes, pela estrada normal. Após a feira na povoação, muitos feirantes seguiam aquela estrada para embarcar em Curralinho em busca de novas mercadorias. Os primeiros que foram passando foram logo presos pela cangaceirada à espreita. Não lhes interessavam estes, pois simples sertanejos, mas sim os soldados que pudessem aparecer.
E não demorou muito para que as expectativas dos cangaceiros se confirmassem. Logo surgem perante aqueles olhares ávidos por vingança. A confirmação de que se tratava de soldados surgiu da troca de sinais, mas de repente se percebe que um estranho está em meio aos dois militares. Este foi poupado, mas não Tonho Vicente e Sisi. O primeiro, baleado, correu e foi alcançado em seguida. Já o segundo, depois de preso, amarrado e interrogado, também não teve destino diferente.
Ainda hoje, duas cruzes marcam o local da emboscada e onde foram enterrados os dois soldados. Quem segue pela estrada de Curralinho, do lado direito de que vai em direção ao rio, facilmente avista o retrato póstumo daquela vingança cangaceira. E além das duas cruzes, também avistará outro retrato impressionante: a devoção atual pelos dois soldados mortos.
Com efeito, muitos moradores chegam ali adoentados, desesperançados, aturdidos pelas consequências da vida, e se entregam a orações e promessas. E os ex-votos estão ao redor das cruzes para ninguém duvidar. Cabeça em madeira, pé e mão, fitas, rosários, dádivas da crença de um povo, ainda que nem sempre saiba dos fatos que originaram a atual devoção.

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27 outubro 2018

UM POVO-PRESA DAS RAPINANTES


*Rangel Alves da Costa


As aves de rapina ou rapinantes são muito perigosas. São vorazes, carnívoras, carnicentas, devoradoras, cruéis e insaciáveis. Basta saber o que fazem os abutres, os gaviões e os carcarás: pegam, matam e comem. Possuem bicos curvos, afiados, famintos e sedentos quanto os mais malvados punhais. E atacam precisamente perante as presas mais frágeis, mais desvalidas, já sem forças para reação ou defesa.
Pelos sertões, principalmente em tempos de seca grande, tais carnicentas possuem vítimas em fartura. Por todo lugar a um bicho só no couro e osso, há um animal caído, há um resto de sopro de vida para ser apagado de vez. Como exímias farejadoras, as rapinantes logo sentem o cheiro da morte e começam, lá do alto, a rondar suas presas. E num instante, em voos rasantes e velozes, já estarão enfiando suas garras, os seus bicos e seus punhais, pelos corpos estremecidos. O sangue jorra, as entranhas são abertas, o fim.
Um terrível e macabro festim, mas é assim que acontece. Quase um canibalismo animal. Ou será uma lei da sobrevivência levada ao extremo? A verdade é que depois do regabofe carnicento, e ainda com os bicos respingando vísceras, sangue e restos putrefatos, os voos são levantados para, muito acima das copas das árvores, os olhos de labaredas continuarem caçando outras vítimas. Insaciáveis, sempre querendo mais, de repente avançam umas sobre outras, e se matam e se devoram. E as que sobrevivem já estarão prontas para atacar novamente.
Sim, parece mesmo uma história macabra demais. Mas como já dito, é assim mesmo que acontece. Porém tudo pode ser visto de outra forma, com as rapinantes sendo transformadas em outras coisas e espécies muito conhecidas por todos. E também a presa, que deixa de ser o desvalido bicho para ser transformado em desvalido homem. Assim, de repente a própria seca pode ser a grande devoradora, o governante pode ser o grande predador, o político pode ser o mais terrível dos carnicentos. O sertão e o sertanejo como espécies fraquejantes que recebem os bicos afiados de tais visitas.
Sim, ser humilde, ser carente, ser empobrecido, ser necessitado, ser à desvalia, a presa está em ti. Sim, ser algoz, ser governante, ser do poder, ser mandante, ser político, ser poderoso, ser de desmedida voracidade, o predador está em ti. De um lado, o escravizado, o submetido, o subserviente, o enfraquecido, o fragilizado. E do outro, o senhor dono do mundo, o mandachuva, o carrasco, o capataz, o verdugo. E tantos bicos afiados, vorazes, ferozes, para estraçalhar vítimas que sequer podem se sustentar.
Há uma terrível selva. Seja nas relações político-eleitoreiras, empregatícias, de mando e autoridade, no cotidiano, há sempre um gavião querendo devorar um pobre trabalhador, há sempre um carcará querendo estraçalhar com um frágil humano, há sempre um gavião querendo abocanhar um desvalido, há sempre um urubu querendo destripar o que já não tem forças nem pra se sustentar.
Qual o valor que o do alto dá ao que está embaixo? Qual o respeito que o poderoso tem por aquele que vive à sua mercê? Qual a dignidade que o mandonismo oferece ao que vive como seu serviçal? São predadores devorando presas. Muitas vezes, não precisa ferir, sangrar, matar, mas tão somente tratar como escravo ou um reles aquele ser humano que deve, acima de tudo, ser valorizado e respeitado.
A verdade é que o desvalido sofre, padece, sangra. Mas a voracidade do predador nunca diminui.

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26 outubro 2018

UMA HISTÓRIA DE POBREZA E SOLIDÃO


*Rangel Alves da Costa

Seria a pobreza condição humana capaz de afastar o reconhecimento do desvalido por outras pessoas, até mesmo em igual condição?
Seria o nada ter, o viver na miserabilidade, sobrevivendo apenas do mínimo necessário para se manter em pé, algo tão terrível e capaz de negar o auxílio na hora extrema?
Seria o viver sozinho, o ter poucos amigos, morar nas distâncias dos centros urbanos e nas ruas de areia e barro, a justificativa para o abandono?
Seria o abandono e a falta de reconhecimento as consequências da pobreza, ou seria a pobreza a causa de tudo ruim que possa acontecer?
Seria humanamente justo que alguém por ser pobre, morar nos cantos da cidade, venha a falecer e não ter ninguém que acorra para uma prece, para velar o morto?
Ou seria apenas consequência da crescente falta de cristandade no coração das pessoas, carência de senso humanitário ou pouco caso com quem morre ou deixa de morrer?
De qualquer modo que possa ser visto, verdade é que um velho, senhor de mais de oitenta anos, partiu dessa vida e na hora do velório não havia uma só pessoa velando o morto.
Era pobre, vivia numa casinha que mais parecia um barraco caindo aos pedaços, viúvo, sem filhos, morava sozinho. Mas havia muitos parentes seus no lugar.
Aparentemente tinha muitos amigos. Ao entardecer, quando deixava sua moradia e seguia até a praça principal da cidade, sentava sempre no mesmo banco de esquina e logo era cercado por muitos.
Sua pobreza e simplicidade não afastavam sua reconhecida sabedoria, seu dom para repassar aos mais jovens as mais diversas lições sobre a vida e ensinar os melhores caminhos perante as tortuosas estradas.
A um dizia sobre a importância de preservar uma vida justa e digna para ter sempre o reconhecimento da comunidade; a outro discorria sobre os malefícios dos vícios e da vida desregrada; e ainda a outro falava apenas sobre sua vida de tantas lutas e do nada que havia conseguido.


Sem medo nenhum, dizia sobre o tempo, ainda rapazote, quando se meteu a ser jagunço do coronel mais importante e poderoso da região. Nunca havia matado ninguém, mas já tinha visto muito sangue de inocente escorrer.
Contava também do tempo que inventou de ser cangaceiro do bando de Lampião e só não foi lutar debaixo do sol porque no dia que ia se apresentar a cangaceirada havia deixado às pressas o coito onde estava escondida.
E assim levava sua vida conversando com um e com outro, ensinando e ouvindo, repassando lições dos tempos antigos e da vida presente. Até sobre porções de ervas medicinais o velho dialogava.
Mas numa daquelas tardes não compareceu ao seu banco de todo entardecer. Nunca mais voltaria ali. Aqueles que o procuraram naquele dia não sabiam que o velho amigo havia falecido quase chegando ao meio-dia.
Morreu sentado diante do barraco, sentado num banquinho. Vizinhos avistaram e correram para acudir. Já era tarde demais. Um caixão de ripas foi providenciado pela assistência social e o corpo estendido por cima de dois tamboretes na saleta apertada da moradia.
Duas ou três pessoas passaram por ali, para o último adeus. Mas depois do entardecer não apareceu mais ninguém. Nem vizinhos, amigos da praça ou outros conhecidos. E quanto mais o tempo passava mais a solidão do falecido aumentava.
A noite chegou e nenhuma vela acesa. Nenhuma beata acorreu para a sentinela, nenhum canto de despedida foi entoado. Apenas o vento soprando pela porta aberta. E lá dentro a solidão da solitária morte.
Sem uma vela, sem uma prece, sem um adeus, apenas a morte velando o morto, apenas a morte…

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24 outubro 2018

NO PASSADO SERTANEJO, UM CASO ARREPIANTE DE ADULTÉRIO E MORTE

*Rangel Alves da Costa

Num tempo em que o adultério (a transgressão da fidelidade conjugal, através da traição) era crime, ocorreu nos arredores da cidade de Poço Redondo um caso pra lá de estarrecedor, envolvendo morte e consequências religiosas.
Não recordo bem se na região das Areias, Queimadas ou outra localidade, mas a verdade é que um marido flagrou a esposa em traição, em pleno ato sexual, e tacou fogo nos dois, na dita e no amante. E matou os dois, um por cima do outro, sem tempo de desapartarem. Preservando os nomes, eis que as famílias ainda estão presentes, fato é que, para a época, o contexto da ação criminosa acabou provocando, além da perplexidade, as discussões mais acirradas.
Acirradas por que uns defendendo a ação do marido traído, vez que as provas dos fatos estavam nos dois corpos nus, um por cima do outro, dentro do mato, sem qualquer chance de se afirmar ter havido uma relação de outra natureza que não a sexual. Já outros, de vertente mais piedosa, viam apenas uma ação criminosa incabível e que, por isso mesmo, merecendo todas as sanções penais.
Mas aconteceu assim, segundo ainda hoje é repassado. Os amantes já estavam acostumados e ter encontros sexuais pelos matos, pelas matarias catingueiras pelos arredores de onde moravam, pois quase vizinhos. Toda vez que o marido saía para se demorar mais um pouco, a esposa prontamente corria aos locais combinados e lá já estava à sua espera o amante.
Ação costumeira, eis que caiu na percepção de alguns, que passaram a desconfiar da traição. Quer dizer, alguns sabiam daqueles encontros, mas o marido não. Aliás, como sempre acontece até hoje. Pois bem. Talvez alguém já conhecedor do caso, prontamente alertou o traído sobre o que estava acontecendo. Este aguardou o momento certo para dar o bote, para perpetrar o flagrante. Não se imaginaria, porém, que a sua intenção não era apenas flagrar, mas matar os amantes.


Assim, o marido avisou que se ausentaria e chegaria tal hora. Saiu fora de casa e se escondeu pelos arredores, espreitando tudo. Então avistou ela saindo e adentrar pelos matos. Aguardou o tempo suficiente para que o encontro se transformasse em safadeza. Foi devagarzinho, pé-ante-pé, cuidadosamente para não ser percebido, e mais adiante já avistou os dois no bem-bom.
Como dito, os dois nus, um por cima do outro, no maior deliciamento do mundo. Foi o momento da ação. Tomado de ódio e fúria, com os olhos sangrando de raiva e o coração gritando de dor, ele nem pensou duas vezes. Aproximou-se mais, mirou a espingarda e tacou fogo. Certamente mais de um tiro. Foram pipocos tão grandes que as rolinhas e os bichos do mato desandaram no oco do mundo. Um gavião ficou na copa da catingueira onde estava e somente para dizer “Eu sabia que isso ia acontecer. Safadeza só dá nisso”.
Os tiros foram tão certeiros que não deu nem tempo de os amantes saírem da posição. Morreram encangados, como se diz. Depois de o serviço feito, o traído, e já transformado em assassino, abandonou o local e deixou os dois corpos lá estendidos. Com a descoberta do crime, pessoas daquela comunidade logo cuidaram de transportar os corpos para a cidade. A intenção era deixa-los na igreja para que depois fosse providenciado o enterro.
Contudo, ante a chegada daqueles corpos vítimas de adultério, o padre de então (um frei muito conhecido) não aceitou de jeito nenhum que os dois fossem colocados dentro da igreja. Então, como nada mais havia a ser feito, os amantes sem vida foram estendidos na calçada, um pouco além da porta do templo religioso. E foi um não acabar mais de conversas. Muitos diziam do desacerto do padre em não os ter aceitado dentro da igreja. Outros, de feição mais conservadora, afirmavam que era o chão mesmo e não numa casa sagrada que os dois pecadores deveriam ficar.
Há de se dizer que a visão daqueles amantes mortos e estendidos perante a porta, acabou provocando as mais intensas reações de ordem moral. Para muitos, ali estavam demonstradas as consequências da traição conjugal, do adultério, da safadeza, e que, portanto, a sociedade e os casais deveriam se espelhar naquele exemplo. Mas, como se tem até hoje, aquele espanto passou e tudo foi ficando cada vez pior.
Outras reações são dignas de nota. A esposa do falecido se aproximou da amante morta jazendo ao chão, puxou-lhe os cabelos e passou a dizer impropérios indescritíveis, até que foi afastada à força por pessoas que estavam ao redor. E soube-se depois que a falecida estava grávida. Mas nunca se soube se do marido ou do amante. Este, pelo cometimento de crime em defesa da honra e pelas provas irrefutáveis, livrou-se de duradoura cadeia.
Até hoje tal episódio é relembrado. Rememorado, porém jamais tido como exemplo para a diminuição das traições conjugais. Com efeito, se todo marido ou companheiro traído matasse a traidora e o amante, não haveria cadeia que desse. Foi tudo assim. Ou mais ou menos assim.

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NEGROS EM SANTANA.

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