*Rangel Alves da Costa
Até fizeram inimizade comigo pelo que escrevi sobre o Coroné Pafôncio Cabroeira. Uns disseram que eu teria de ter dito mais, de destripar o cabra de vez e contar tudo daquela malvadeza em pessoa. Outros até juraram me tocaiar, me emboscar, fazer o mesmo que o coroné tanto mandava fazer. Mas não retiro nem ponto nem vírgula do que escrevi. E taí a prova.
Digo e repito tudo novamente. Na certeza de haver gente ruim no mundo, também a certeza de que nunca houve uma pessoa tão ruim igual ao tal do Coroné Pafôncio Cabroeira. A ruindade em pessoa, como se dizia na região de seu feudo e mando.
Um fi da gota serena, dizia um. Uma imundiça das braba, asseverava outro. E mais adjetivos tão mirabolantes emoldurando um quadro verdadeiramente dantesco: um homem nascido para ser a arrogância em pessoa, a brutalidade em forma de gente, tudo o que não presta num só ser humano. Humano? Ora, muita gente assegurava que não.
A Velha Tinhó muita sabia da vida do renegado, como dizia. Segundo a centenária rezadeira, desde que veio ao mundo aquele homem logo se mostrou a nojeira humana que mais tarde seria. A primeira coisa que fez foi dar uma mordida tão grande no peito da mãe que arrancou-lhe o tampo. Como, se criança de pouco tempo nascida? Explica-se.
Como verdadeira aberração, o menino já nasceu com dentes. E afiados. Porém, o mais estranho ainda era que no lugar da língua tinha uma coisa fina e dividida, bifurcada igualmente a língua de cobra, que se estendia horripilante além da boca. Não chorava. O que fazia era sibilar igual serpente.
Uma aberração do outro aquele que mais tarde se tornaria no Coroné Pafôncio Cabroeira. Dizia ainda a Velha Tinhó que o meninote nunca brincava igual a outras crianças de sua idade. Comprazia-se mesmo em arrancar cabeça de calango, em furar olho de preá, em amarrar o rabo do gato ao rabo do cachorro. E depois açoitar.
Certa feita que arranjou uma desavença com um de sua idade e que fez foi morder o calcanhar do menino. Dois dias depois este morreu todo arroxeado, envenenado. Chegou ao ponto de ninguém da região sequer passar perto de sua casa. Todos temiam suas atrocidades. Acertou uma pedrada com baleadeira no jumento montado pelo padre Minervino, que o bicho caiu já despedido de tudo. E por cima do sacristão.
Ao invés de socorrer o sacristão, o endiabrado Pafôncio colocou cansanção dentro de sua batina. O pobre do homem tanto se remexia como gritava por socorro, até que encontrou força para empurrar o jumento e saiu correndo desesperado. Até hoje ninguém sabe o seu paradeiro. Enquanto isso, o terrível menino sibilava com sua língua de cobra ruim. E planejando mais maldade, mais aporrinhação na vida de cada um que pudesse alcançar.
Filho único, seus pais desapareceram misteriosamente. Segundo dizem, ao invés de entristecido pelo ocorrido, o que se viu foi um Pafôncio já rapazote até sorrindo. E foi por isso que Totonho Chibanga logo sentenciou: Aquela cobra ruim deu conta dos pais. Eles num sumiro não, sumiro cum eles. E só pode ter sido o coisa ruim.
Depois disso se mostrou até outro homem. Mostrava-se trabalhador, sempre progredindo na terra e aumentando seu chão. Mas uma coisa continuava atiçando a curiosidade de todo mundo. É que Pafôncio nunca falava, sequer abria a boca. Ninguém sabia, mas ele próprio havia cortado a língua viperina, de cobra peçonhenta.
Queria ser outro homem, imaginando até que no lugar daquela aberração surgiria uma língua igual a de todo mundo. Mas nada disso aconteceu e ele simplesmente resolveu não mais abrir a boca. Daí então, aquele que já carregava em si a maldade do mundo, sentiu-se cada vez mais reprimido, dolorido por dentro. E tudo isso descarregou no lombo dos outros.
Já era grande latifundiário, senhor de meio mundo de terras, quando começou a exasperar todo o aprisionado dentro de si. Em suas mãos, trabalhando em suas terras, o ser humano era bicho. Como não abria a boca pra gritar, ou dava chibatada ou ferroada no lombo. Pobre do trabalhador tendo de suportar tudo isso.
Mas suportava para não morrer de fome naquele mundo sem nada. Suportava para não ser pior, pois sabia que corria até risco de morte se retrucasse, sem ao menos pensasse em dar o troco. O patrão era grande, era forte, era poderoso, era coronel.
O troco, contudo, foi dado um dia. Tonico Pilica amolou a faca e só esperou que o seu algoz chegasse de chibata à mão e a lançasse sobre seu lombo. E Pilica chamou a presa à lâmina afiada. Fez um trabalho mal feito e ficou esperando. O homem chegou já soltando fogo pelas ventas. Assim que levantou a chibata recebeu uma pontada. Depois mais outra e mais outra. Ali mesmo se findou.
Nenhum urubu apareceu para comer da carniça. Nenhum carnicento quis provar daquele resto imundo até na morte. Depois disso e até agora o lugar se tornou mal-assombrado. Depois do anoitecer então. Até mesmo de longe se ouve grunhidos seguidos de terríveis gemidos, como se alguém estivesse sendo ferozmente chibatado. O mal pagando ali mesmo pelos seus pecados.
Vai-te pra lá coisa ruim, desgrameira.
Escritor
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