15 de jul. de 2017

A VELA ACESA E A FACE DE DEUS

*Rangel Alves da Costa

Sertão. O sol já arribou de vez. Sua última labareda avermelhada acabou de abrasar. O pôr do sol já se pôs com seu ninho e tudo. Os horizontes já não estão mais pincelados de fogo e vermelhidão. Agora tudo cinzas e sombras. Tudo amarronzado e nuvioso. É boca da noite.
Boca da noite que no sertão principia o verdadeiro anoitecer. É a partir da boca da noite que chega a escuridão, que faz toda a paisagem se alongar em cores negras, mas que logo serão tingidas pelo dourado da lua.
Um chamado à lua que já desponta faceira. Chega distante, pequenina, devagar, para logo engrandecer como as paisagens sertanejas ao silêncio do anoitecer. Lua imensa, brilhosa, bonita, uma festa lá em riba, uma festa por onde avança sua singela luminosidade.
Não há mais cacarejo de galinha, não há galo azucrinando a vida no poleiro. As festas de quintal e cantos de cerca já cessaram de acontecer. O cachorro repousa num canto. Pela janela aberta o frescor do instante vai ameaçando apagar o candeeiro.
Candeeiro de pouco gás, fumaça escurecida saindo do bico enferrujado, também pouca luz, por isso a porta aberta para a lua entrar com São Jorge e tudo. Mas não há lua maior, não há brilho maior, não há chama maior, que a luz da vela acesa.
Assim que o sino da igreja da memória ecoa - pois há na memória um relógio que nunca se esquece de badalar - eis o instante de Mariazinha caminhar em direção ao seu canto de parede e aí, aos pés do velho oratório, se ajoelhar para a oração de todo dia.
Canto de parede da sala de cipó e barro ou no cantinho do pequeno quarto de dormir, sempre um velho oratório por cima de mesinha rústica ou mesmo tronco de madeira já carcomido de tempo. Aí colocado o céu, a casa de Deus, o portal da salvação de um povo.
Oratórios ainda continuam de maior abnegação religiosa. Atualmente não, mas noutros idos não havia casa que se prezasse que não tivesse uma igrejinha de madeira, de portas e lados envidraçados, guarnecida de santos, fitas e lembranças religiosas, o oratório.


Entre aqueles de fé maior, o oratório constitui verdadeiro templo sagrado, uma moradia santa na vida terrena, um altar para santos e anjos em meio ao lar familiar, um pedestal de madeira onde Deus possui seu trono perante o frágil humano.
Assim, em determinados instantes do dia, principalmente ao alvorecer e ao anoitecer, mas também ao meio-dia, dirigir-se ao oratório e perante ele se ajoelhar é como estar numa igreja, é como estar ao portal do céu, é como estar perante os sagrados mistérios.
Mariazinha, de raiz fincada no beatismo, na devoção religiosa maior, também possuía o seu céu ali num cantinho do quarto pobre de sua humilde moradia. Oratório herdado de sua mãe, e a esta chegado desde sua avó. Naquele pequeno céu a sua relíquia maior.
Céu de madeira e antigas imagens sacras que todo santo dia recebia a visita de Mariazinha. Não saía do quarto ao alvorecer sem antes se ajoelhar aos seus pés, fazer as costumeiras orações, pedir por si mesma e pelos seus, agradecer os préstimos recebidos.
Mas nada igual à visita que fazia quando a boca da noite chegava, depois que o sino da memória anunciasse a hora sagrada, a Ave Maria sertaneja, o ponteiro das seis horas da noite. Era como se a partir desse instante seus passos já não soubessem ir a outro lugar senão perante o altar de seu oratório.
Mariazinha não arreda nunca deste encontro sagrado. Corre de onde estiver para não perder seu mistério de fé. Nada que estiver no fogo de lenha consegue impedir que aquele instante seja mais importante do que tudo na vida. Que queime o toucinho, não o desejo da sagrada presença.
Segue, vai, corre, mas de repente já está dentro do quarto, ajoelhada, contrita, com as mãos entrelaçadas junto ao peito, olhos fechados e boca sussurrando palavras de fé, de repente, ao abrir os olhos, diante de si a face de Deus. Sim, a face de Deus na luz da vela acesa.
Mistério maior dos maiores mistérios. Em toda vela acesa pode ser avistada a face de Deus. Não que o olhar humano assim consiga avistar, mas pelo que os corações humanos conseguem avistar. A face de Deus somente avistada pela inabalável fé através dos olhos do coração.
Mãos que seguram rosários, terços, relicários. Bocas que silenciam e que gritam em silêncio, que apenas sussurram ou dizem as rezas, as orações, os rogos, os pedidos. Mas somente o coração consegue avistar a face de Deus perante a vela chamejante da fé.
Uma face sagrada que é assim avistada por que a fé e a devoção chamam o Senhor para além do olhar, para bem juntinho do coração!

Escritor
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