28 de jun. de 2017

DIÁRIO DE UM REFÉM NAS GARRAS DE LAMPIÃO


I
Dos cascos dos animais
brotavam nuvens de pó.
A notícia que corria
entre o povo era uma só:
Lampião se aproximava
para atacar Mossoró.

Portanto, era necessário
agir com a maior urgência.
As ações do cangaceiro, 
segundo a experiência,
eram sempre recheadas 
de maldade e violência.

Foi assim que o fazendeiro
de nome Antônio Gurgel,
que ostentava inclusive
patente de coronel,
viu-se de uma hora para outra
refém de um bando cruel.

Informado que o bandido
estava na região,
Coronel Gurgel tentou,
imediatamente então,  
prevenir a sua gente
contra o feroz Lampião.

Mas por infelicidade,
má sorte, ou talvez destino,
deparou-se no caminho
com o bando de Virgulino
que aonde passava, um rastro
deixava de desatino.

Logo ao ser capturado, 
julgaram-no importante,
pois ele era fazendeiro
e também comerciante.
Começava o pesadelo
de Gurgel naquele instante.

Levado ao chefe do bando,
que vibrou com a novidade,
ficou estabelecido 
que, após o assalto à cidade,
se exigiria o resgate
daquela preciosidade.

A data desse sucesso
vale a pena registrar:
domingo, 12 de junho
de um ano singular;
mil e novecentos e 
vinte e sete, sem errar.

2
Mas não era o coronel
do bando o único refém,
dona Maria José
era outra vítima também
da sanha dos criminosos
que não poupavam ninguém.

Porém a prioridade
do bando, de imediato,
era atacar Mossoró
(afinal, esse era o trato)
e saquear a cidade…
Depois se embrenhar no mato.

Foi planejado o ataque
já para o dia seguinte.
Os planos foram traçados
com detalhes e requinte,
mas Lampião não notava
ser tudo aquilo um acinte.

No horário combinado,
dezesseis horas em ponto,
o bando entrou na cidade.
Pra vitória veio pronto, 
mas ao invés de vencer
foi vencido no confronto.

3
Pouco mais de meia hora
durou a ação do bando,
que foi recebido à bala,
pois o estavam esperando.
E, ao ser assim rechaçado, 
sem pudor, foi recuando.

Foi este o maior fiasco 
sofrido por Lampião
desde que entrou no cangaço,
terror impondo ao sertão.
Talvez por subestimar
de um povo a reação.

A fragorosa derrota 
pôs em fuga os cangaceiros 
que se internaram nas brenhas
em seus cavalos ligeiros,
conduzindo o que podiam
para outros paradeiros.

Mas mesmo em fuga, os facínoras, 
após serem derrotados,
não soltaram suas presas,
isto é, os sequestrados…
Exigiriam por eles
valores bem elevados.

4
II
Agora, peço ao leitor
para, a partir deste instante,
acompanhar alguns trechos
de um diário interessante
que escreveu um dos reféns,
numa narração brilhante.

Deixemos, pois, com a palavra
esse homem extraordinário
que é o coronel Gurgel, 
autor do dito diário
relatando a convivência
com o bando sanguinário.

III
12 de junho. É noitinha.
Mais ou menos seis e meia.
Na escuridão sertaneja
nosso olhar triste vagueia…
Somos três prisioneiros.
De sons a mata está cheia.

Estamos no ano de
27. Século XX.
Essa nossa desventura
pintor nenhum há que pinte.
À mercê desses bandidos,
é incerta a hora seguinte.

5
Com destino a Mossoró,
segue o bando e nos conduz.
Somente dos pirilampos
conseguimos ver a luz.
Surge então São Sebastião.
Da igreja vemos a cruz.

Neste lugar, os bandidos  
cometeram menos danos
deixando a população
fora de seus cruéis planos.
Talvez por causa do horário
pouparam seres humanos.

Cinco e meia da manhã,
levantou-se acampamento.
Era já 13 de junho.
Estava o céu nevoento.
Sob a orquestração das aves,
pôs-se o bando em movimento.

Foi um dia indescritível
para nós principalmente,
pois o bando parecia
demônio em forma de gente,
destruindo e massacrando
o que via pela frente.

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A palavra de ordem era 
assassinar e roubar.
Ante tal selvageria
se pôde às nove chegar
bem perto de Mossoró,
no oeste potiguar.

Cerca de 70 homens,
70 feras cruéis;
uns iriam a cavalo,
outros pelos próprios pés.
Não constava dos seus planos
encontrar nenhum revés.

Mas, desses, só uns 40
seguiram para o ataque, 
divididos em três grupos:
Lampião, na luta um craque,
mais Sabino e Massilon,
dois bandidos de destaque.

Debaixo de forte chuva,
relâmpago e trovoada,
começou o tiroteio,
porém foi dura a parada.
Em menos de uma hora
a luta estava encerrada.

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Ao pôr do sol, retornaram,
um após outro, os bandidos.
Alguns sem chapéu, rasgados;
outros muito esbaforidos,
ante o susto que tomaram
pelas balas repelidos.

Ordenaram que montássemos
nos cavalos sem demora,
pois imediatamente
pretendiam dar o fora.
Não podiam perder tempo,
estava em cima da hora.

Assim, em poucos instantes
estávamos a caminho,
no rumo do Ceará,
a terra do “meu Padrinho”,
maldizendo a correria   
no meio de tanto espinho.

Por volta da meia-noite
paramos para um descanso,
todos bastante famintos.
Mas fizemos grande avanço
ao fugir de Mossoró
e seu povo nada manso.

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Cinco horas da manhã.
14 é agora o dia.
Cangaceiros e reféns
retomam a travessia.
De ânimo novo, os bandidos
promovem estripulia.

Do velho Manuel Freire
logo a fazenda é cercada
e em 10 contos de réis
sua vida é estipulada.
Importância que o coitado
não dispunha na morada.

Sem apelo, o fazendeiro 
viu-se também sequestrado.
Mas, conseguindo o dinheiro,
foi logo após libertado, 
próximo a Lagoa do Rocha,
tal qual fora estipulado.

Por volta das nove horas
o bando se aproximou
de mais uma outra fazenda
que facilmente assaltou
e do seu proprietário
10 contos de réis roubou.

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No dia 15 de junho,
nove horas mais ou menos,
chegamos a um lugarejo
onde havia bons acenos,
o que fez os celerados 
se mostrarem mais amenos.

Lá estava um emissário
aguardando Lampião
para dar-lhe as boas-vindas
e informar ao capitão
que podia em Limoeiro
entrar sem apreensão.

No entanto havia um pedido
feito com certa humildade:
que não fosse cometida
nenhuma barbaridade
contra qualquer cidadão
na hospitaleira cidade.

Lampião, envaidecido,
mostrou-se muito contente.
E assim o bando partiu
com o comandante na frente,
em Limoeiro, às quinze horas,
entrando triunfalmente.

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Dando vivas ao governo
do Ceará e também
ao padre Cícero Romão,
todos respondendo “amém”,
Lampião foi pelo povo
recebido muito bem.

À frente da multidão,
diversas pessoas gradas,
como o vigário e o prefeito.
De gente as ruas lotadas…
As cenas daquele dia
jamais serão olvidadas.

Naquela oportunidade,
para registro do fato,
um fotógrafo pediu
para tirar um retrato
do capitão e seu grupo,
sendo atendido no ato.

Lampião mandou formar
todo o bando, juntamente
conosco, os reféns, e o grupo,
qual criança obediente,
fez pose para o fotógrafo
com o chefe bem à frente.

11
Em seguida, Virgulino
recebeu a informação
que estava vindo uma tropa 
em sua perseguição…
Então, sem demora, o bando
partiu noutra direção.

Pouco depois das seis horas
da manhã de 16 
de junho (pois o diário
é escrito neste mês),
foi recomeçada a marcha
e  assalto nenhum se fez.

Em 17 de junho
aquele bando execrável,
após muito caminhar
por vereda intransitável,
pôde acampar num local
sinistro, mas favorável.

Era o Saco do Garcia,
coberto de serroteira,
onde matamos a sede
e tiramos a poeira, 
pois ali havia água,   
com fartura e de primeira.

12
Os bandidos se divertem
sempre a jogar “31”.
Formam grupos de acordo
com as posses de cada um.
Deu pra ver que é, entre eles,
a distração mais comum.

Agora mesmo, a propósito,
há muitas mesas de jogo.
Nesta vida que eles vivem,
isto é mesmo um desafogo.
Nenhum, porém, dos que jogam
descuida do pau de fogo.

Na verdade, com esses brutos
ocorre uma coisa incrível:
a vida calma que levam
até parece impossível…
Da forma como se portam
parecem gente de nível.

Lá pelas dezoito horas,
de Arara chegou o guia
para avisar da passagem
de uma Força que ia
no rumo de Pau dos Ferros.
20 praças nela havia.

13
Vinha tal Força os maiores
absurdos cometendo:
roubando e aplicando surras,
gente inocente prendendo,
causando à população 
um constrangimento horrendo.

Inclusive, até prendeu,
por azar, um portador
que conduzia 8 contos
pra resgatar um senhor,
o velho Joaquim Moreira,
também refém sofredor.

Dia 18 de junho.
Muito cedo, Lampião
mandou o guia a Arara
pra colher informação
relativamente à tropa
que andava na região.

Os homens dormiram ontem
completamente equipados,
pois se houvesse algum alarme
estariam preparados.
Assim, hoje amanheceram
todos bastante agitados.

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Eis de volta o portador
que ao Pereiro foi levar
missivas endereçadas
a pessoas do lugar
com pedidos de dinheiro
para um refém libertar. 

20 contos de réis pôs 
em liberdade o Moreira;
o qual, após se ver livre, 
desabou em choradeira.
Lampião deu-lhe um cavalo
e ele partiu na carreira.

Em 19 de junho
continuo, graças a Deus,
a ser muito bem tratado
por Virgulino e os seus.
Nenhum deles, até hoje,
tentou contra os brios meus.

Somente o cabra Sabino,
que não é nenhuma joia, 
e por ser chefe de grupo
Lampião sempre o apoia,
me deixa contrariado
quando é servida a “boia”.

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Por pirraça, o malfeitor
pertinho de mim se senta
e deita em minha comida
muito molho de pimenta
pra ver meus olhos em lágrimas,
pois o ardor ninguém agüenta.

Marchar na caatinga em fuga
é sem dúvida um sofrimento,
sob o sol abrasador,
dormindo sempre ao relento,
com o risco de enfrentar
a Força a qualquer momento.

O guia Otílio Diógenes
dormiu à noite com o bando
e neste 20 de junho,
mal o dia foi raiando,
nos conduziu a um sítio
onde há boa água jorrando.

É decerto prazeroso
parar num lugar assim.
A sede de várias horas
prontamente chega ao fim.
Talvez para compensar 
tanto momento ruim!

16
Às treze horas do dia
21 de junho, afinal,
com  muita pena partimos  
desse aprazível local
que tão bem nos acolheu…
Talvez não haja outro igual!

Em marcha silenciosa,
o bando um serrote vence.
Todos caminhamos tensos.
É muito grande o suspense…
E então surge à nossa frente 
a polícia cearense.

Pelo tenente Pereira
é a tropa comandada. 
Rompeu a fuzilaria
para nós inesperada.
Apesar das precauções,
caímos numa emboscada.

Este momento terrível
não posso esquecer jamais.
O primeiro movimento
foi pular dos animais
que, apavorados, fugiram
por dentro dos matagais.

17
Arreados como estavam
perderam-se as alimárias
conduzindo nas caronas
muitas coisas necessárias,
até, inclusive, gêneros
para as refeições diárias.

Durou cerca de hora e meia
o combate referido,
resultando, no final,
ferimento num bandido,
aliás, de Lampião
muito estimado e querido.

Moreno tinha um dos braços
bastante danificado
pela bala de um fuzil
que o havia acertado,
o qual não podia agora  
receber nenhum cuidado.

Não havendo, pois, remédio
foi atado ao braço um lenço
para servir de tipoia
e conservá-lo suspenso.
O cangaceiro sofria
e o desespero era imenso.

18
Já no dia 22,
antes de a manhã raiar,
foi dada a ordem de marcha,
sendo possível parar
talvez pelas nove horas,
por um riacho encontrar.

Porém água não havia.
Comida a gente não tinha.
Enfim, a situação
realmente era mesquinha.
Pra nós seria manjar
rapadura com farinha.

Virgulino então mandou
pesquisar na vizinhança,
pois estava convencido
de ocorrer uma mudança
favorável para todos,
e seria sem tardança.

Pouco depois retornava,
alegre, um dos cangaceiros
com o cantil cheio d’água
e informes alvissareiros:
perto havia uma cacimba,
casa, comida e bons cheiros.

19
Um dos bandoleiros foi,
disfarçado, à residência.
Voltou de lá com alguns queijos,
demonstrando eficiência.
Passamos ali o dia 
sem alarde, com prudência.

Dia 23 de junho.
Ao brilho do sol primeiro,
com precaução redobrada, 
o grupo partiu ligeiro.
Nove horas mais ou menos
foi avistado um vaqueiro.

Detido sob a ameaça
que se corresse morria,
a primeira providência
foi tomar-lhe a montaria
para transportar Moreno
que andar quase não podia.

Por volta das vinte horas,
já do dia 24,
acampamos num local,
um enorme anfiteatro
que, dadas as circunstâncias,
parecia ainda mais atro.

20
Lampião mandou fazer 
logo um reconhecimento
dos arredores, a fim
de saber do movimento
das forças policiais,
bem como do seu intento.

A informação que chegou
não foi nada auspiciosa,
pois estávamos cercados
por tropa bem numerosa.
Esta notícia deixou
todo o bando em polvorosa.

Em 25 de junho,
antes de nascer o dia,
já o grupo inteiro estava,
apesar da calmaria,
preparado para a luta
que início logo teria.

Próximo das seis e meia
irrompeu o tiroteio
com a força policial
ao bando atacando em cheio.
Este, porém, enfrentou
à polícia sem receio.

21
Durante a luta, os bandidos
praguejavam, davam grito.
As suas imprecações
se perdiam no infinito…
Após cerca de uma hora
arrefeceu o conflito.

Lampião, como estratégia,
determinou suspender
o tiroteio. Manobra
para à Força fazer crer
que os cangaceiros fugiram
receosos de morrer.

E ela caiu na armadilha
do astuto Lampião,
pois veio se aproximando
sem a devida atenção,
tornando-se um alvo fácil
para o bando em prontidão.

Lampião ordenou: “Fogo!”
E, depois de meia hora
de intensa fuzilaria,
vimos a tropa indo embora,
desbaratada, sem rumo,
pelo matagal afora.

22
Com o término do embate, 
houve uma reunião
de Lampião com Sabino,
sendo decidido então
que era chegado o momento
da nossa libertação.

Logo em seguida, Sabino
veio nos dar a notícia,
bastante compenetrado
e sem nenhuma malícia.
Sua voz nos meus ouvidos
soava como carícia.

Mas não iam nos deixar
por enquanto ali sozinhos,
pois se assim procedessem 
estavam sendo mesquinhos.
Na certa nos perderíamos
naqueles ínvios caminhos.

E ainda mais: poderíamos,
para cúmulo do azar,
cair em poder das Forças
que nos fariam falar…
Portanto, de modo algum  
valia a pena arriscar.

23
Até as dezessete horas
caminhamos escoltados.
Finalmente, ordenaram
que ficássemos parados.
Não demoraria muito
para sermos liberados.

Esperamos pouco mais
de meia hora… Por fim,
Sabino veio até nós
e deu 100 mil réis a mim.
Também com dona Maria 
ele procedeu assim.

Depois deu a indicação
de uma estrada ali pertinho:
até uma roça fôssemos,
pois lá havia um caminho
que ia dar numa casa…
Do sequestro era o finzinho.

Era muito grande a minha
emoção naquela hora!
Tudo o que eu mais desejava
era, sem qualquer demora,
ao encontro da família 
no mesmo instante ir embora…

Bom Jardim, Fevereiro/2009. 
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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