*Rangel Alves da Costa
O texto abaixo, anteriormente intitulado “Existiram quantos Lampião?”, foi reescrito com o título acima e publicado em jornal impresso. Poucas modificações foram introduzidas, mas a modificação no título se deu para que não fossem ventilados erros gramaticais, pois este autor bem poderia tê-lo intitulado de “Existiram quantos Lampiões?”, porém preferiu não pluralizar tão importante nome da história brasileira, apelido único e que assim de deverá ser respeitado. Mas vamos ao texto em si.
O cangaço, enquanto fenômeno social dos sertões nordestinos, ainda hoje é construído e reconstruído segundo as muitas versões surgidas. Atrás de seu conceito sempre persistem indagações que vão sendo preenchidas segundo as vertentes abraçadas pelos historiadores.
É como se tivessem existido vários mundos dentro do próprio mundo cangaço. Tanto assim que os fatos vão sendo sempre recontados de forma diferenciada, como se negando verdades nascidas desde outros tempos. E quando se trata sobre Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, então tudo se desanda mesmo.
Existiram quantos Lampiões dentro de um só Lampião? Sim, aquele mesmo nascido Virgulino Ferreira da Silva, quantos existiram? Quantos homens couberam num só corpo e numa só feição daquele nordestino arretado que um dia se insurgiu contra o mundo dos poderosos (ao menos em parte)?
Ora, ante o emaranhado que se tornou a história do cangaço, perante os labirintos que a todo dia colocam a saga dos homens das caatingas, há de se perguntar quantos Lampiões existiram naquele único e famoso Lampião. Assim há de ser sob pena até se duvidar sobre a sua real existência. Ora, por vezes chega a parecer que nem se fala de homem, mas de um ser mítico, imaginado na crendice popular.
Diante das histórias e mais histórias, ante as lendas e os mitos que se propagam a seu respeito, diante das inúmeras versões para os mesmos fatos, não há como não perguntar quantos Lampiões existiram naquele rei cangaceiro, naquele Lampião desgarrado de seu Pernambuco, de sua Vila Bela, e tomando o mundo nordestino de assalto.
As datas sobre alguns eventos de sua vida são tão discordantes que até parecem se tratar de pessoas diferentes. Igualmente com relação à sua infância, ao seu batismo, à sua criação. Para muitos até Lampião já nasceu cangaceiro. Até mesmo filmes enveredam num imaginário difícil de acreditar.
Vários, muitas pessoas, num só ser humano. Assim com Virgulino Ferreira da Silva, mas principalmente com Lampião. O herói, o bandido, o religioso, o facínora, o covarde, o estrategista, o líder, o dominado, o carrasco, o comedido, tudo isso numa só pessoa.
Tudo isso numa só pessoa, num só Lampião, por que é assim que sua imagem é propagada, segundo a intuição da pessoa que de um modo ou outro o concebe. O mais espantoso é que dificilmente Lampião é visto a partir dele mesmo.
Comumente, a história trata o homem pela sua saga e não pela sua sina. Desse modo, Lampião é quase sempre estudado e definido como o cangaceiro. Apenas. Lampião cangaceiro, líder de bando, carrasco, a frieza peçonhenta das matas.
Mas também como o injustiçado, como o ferido desde o seio familiar, como o odioso levado pela vingança. Ainda neste sentido, o homem já gestado em meio à violência e, portanto, o cabra marcado a se eximir de si mesmo para conviver com outra realidade.
Daí uma indagação: Quantos pesquisadores, estudiosos do cangaço e pesquisadores, já se voltaram mais para Virgulino, o homem, e não priorizaram tanto Lampião, o cangaceiro? A verdade é que a história do mito de vez em quando se esquece da origem.
E assim por que além do Lampião em si, o cangaceiro das caatingas, existia um homem chamado Virgulino Ferreira da Silva. E somente se conhecendo a história do homem é que se pode chegar ao desvendamento daquilo que o destino lhe reservou.
A construção da história do homem através da história do mito, invariavelmente provoca a construção de identidades diferentes, contraditórias, até que se negam a si mesmas. Uma hora Lampião é o devoto e temeroso dos castigos de Deus, outra hora é o que observa passivamente crianças sendo lançadas ao alto para serem apanhadas pela ponta do punhal.
Nada de exagero. É assim que dizem, seja mentiroso ou não. O Lampião devoto de Padre Cícero e de Nossa Senhora, mas ao mesmo tempo aquele que consentiu com as maldades de Zé Baiano, o carrasco ferrador.
Então, quantos Lampiões dentro de Lampião existiram? Há o Lampião que foi morto na chacina do Angico, há o Lampião que foi envenenado, há o Lampião que sequer estava no coito sangrento naquele alvorecer sertanejo, há o Lampião que fugiu, há o Lampião que morreu já centenário lá pelas Minas Gerais. Então: quantos cangaceiros existiram num só homem?
Dizem até que Lampião foi comunista. Dizem e tentam provar. E também aquele Lampião “amulezado”, segundo a insanidade de alguns. Contudo, o mais difícil mesmo parece mesmo é conhecer aquele Virgulino antes de se tornar Lampião.
Afirmar simplesmente de seu banditismo é prova maior do total desconhecimento de sua história, principalmente familiar. Afirmar de seu heroísmo é igualmente desconhecer das maldades consentidas e pactuadas enquanto líder maior de seu bando.
Então, quantos Lampiões na face de Lampião existiram? Tal resposta certamente jamais será obtida. Prova maior é que todo dia surge um novo livro contando a história de um Lampião diferente.
Escritor
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