*Rangel Alves da Costa
Nasci no semiárido nordestino, numa região sertaneja conhecida como Alto Sertão do São Francisco, precisamente por ser cortada pelas águas do Velho Chico. Da sede do município, Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, até a beira do rio são cerca de quatorze quilômetros, seguindo em direção a Curralinho...
Fiz tal relato preliminar porque se iniciasse o texto dizendo ter nascido na mais autêntica aridez nordestina, com estiagens que se prolongam por anos a fio, com vegetação cuja predominância maior é do mandacaru, do xiquexique e da desnuda catingueira, logo imaginariam que nenhum rio estivesse tão permanentemente presente naquele lugar.
E o São Francisco, mesmo ameaçado na sua existência pelas ações degradantes do homem, pelo uso indiscriminado como fonte energética e pelos canais e irrigações que vão surgindo para minar suas forças, continua fazendo o seu caminho molhado, fazendo as curvas e recurvas leitosas, levando no seu leito embarcações de médio e pequeno porte e no seu corpo a sobrevivência daqueles que se esforçam para pescar o alimento da sobrevivência.
Certamente não é mais o Velho Chico grandioso e caudaloso que os livros de geografia ensinavam. Longe o tempo onde as estradas sertanejas seguiam as curvas do rio, onde o comércio e a pujança fortaleciam as ribeiras e faziam surgir portentosas cidades. Penedo, Propriá, Neópolis, tudo da semente leitosa que de muito longe chegava trazendo riqueza e bonança.
Também quase não é mais caminho para os ribeirinhos, não é mais garantia de sobrevivência dos habitantes de suas margens e arredores e nem mesmo a razão de viver daquelas povoações que desde o amanhecer ao anoitecer avistavam o rio correndo como se ali estivesse o próprio sangue percorrendo na veia. As senhoras não sentam mais ao entardecer nas calçadas altas para avistarem as chegadas e partidas. Pouco surge na curva do rio que mereça ser avistado com grandioso espanto.
É até triste dizer, mas a verdade que a contínua magrez do rio desde muito que vem deixando a população ribeirinha em situação de abandono e desamparo. Se de um lado, e ao longo da história, a gente barranqueira se fez dependente demais do rio, de outro, a nova situação de escassez do que as águas ofereciam não veio acompanhada de políticas públicas que permitissem ao homem sobreviver perante a nova e desafiadora realidade.
Assim, num processo de lenta destruição e de nenhuma renovação, o que absurdamente se vê é a água ao lado da sede, ou a sede sem que o povo tenha sido ensinado a beber a água. Neste caso, tem-se que o leito do rio, porém com menos força e profundidade, com quase nenhum alimento nas suas águas, continua passando diante dos ribeirinhos, de suas casas, de suas famílias, mas quase sem nenhuma valia para os objetivos de sobrevivência.
Daí, com o rio continuando a passar, porém sem que o deitar de uma canoa no seu leito seja garantia de pesca nem de peixe pequeno, outra coisa não se tem que não a angustiante metáfora da água que não mata a sede. E porque sede é aqui noutro sentido que não a falta de água, mas indicando a fome e todas as formas de desamparo do ser humano ribeirinho.
E também a sede da fartura de um dia, da saudade das águas piscosas nos tempos idos, das embarcações que aportavam fazendo o comércio e interligando a vida, da rede jogada com a certeza que o alimento do dia chegaria enroscado, do olhar que se derramava cheio de admiração por cima do leito largo, distante. E agora ter apenas o rio passando, fazendo sua trajetória como obrigação, como pessoa que caminha sem contentamento, sem felicidade, num tanto faz de viver.
Por que o Velho Chico nem se compara ao grande pai de um dia, aos seus órfãos pouco resta a fazer senão lamentar às suas margens. Quando a fome chega, somente se voltando para a cidade para mendigar o pão. Não se estabeleceu, com suficiência e provimento de recursos, uma cultura de plantios às suas margens; não procuraram ensinar ao barranqueiro nada que o libertasse da eterna dependência de suas águas.
Parodiando o poeta lusitano, o São Francisco continua o mais belo, o mais vigoroso, o mais pujante e encantador rio que passa por aquela aldeia, por aquelas margens de um povo sofrido, mas não porque seja o único rio que passa por aquela aldeia, e sim porque veia, raiz ribeirinha, leito onde o sertanejo lança o olhar, num misto de ternura e tristeza, imaginando que amanhã será bem melhor.
E será. Basta que matem a sede do rio, que diminuam a fome do rio, que alimentem a sua necessidade de preservação. Somente assim a magia da carranca protetora voltará a existir. E o nego d’água pulando da ribanceira, e a lua vaga contando seus contos de bom viver...
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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