2 de mar. de 2017

MONTE SANTO E O EPISÓDIO DE CANUDOS

por José Gonçalves do Nascimento

A cidade de Monte Santo, situada no semiárido baiano, à sombra da Serra do Piquaraçá, foi, no passado, palco do episódio de Canudos. Tornado vila em 1837, o lugarejo detinha uma área territorial que abarcava grande parte do sertão baiano, incluindo Canudos, povoação fundada às margens do rio Vazabarris pelo peregrino cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, ou Antônio Conselheiro. 


Em 1888, o coronel Durval Vieira de Aguiar, no seu livro Descrições Práticas da Província da Bahia, informava ter visto Antônio Conselheiro em terras de Monte Santo, mais precisamente no povoado do Cumbe, atual Euclides da Cunha (BA). Escreveu Durval Vieira de Aguiar: “Quando por ali passamos achava-se na povoação um célebre Conselheiro, sujeito baixo, moreno acaboclado, de barbas e cabelos pretos e crescidos, vestido de camisolão azul, morando sozinho em uma desmobiliada casa, onde se apinhavam as beatas e afluíam os presentes, com os quais se alimentava (...) O povo costuma fluir em massa, aos atos religiosos do Conselheiro, cujo aceno cegamente obedece (...) Nessa ocasião havia o Conselheiro concluído a edificação de uma elegante igreja no Mucambo, e estava construindo uma excelente igreja no Cumbe, onde a par do movimento do povo, mantinha ele admirável paz”.


Foto Flávio de Barros

Anos mais tarde, em 1892, o Conselheiro encontrava-se de novo em Monte Santo, desta feita na sede da vila, onde, juntamente com seu numeroso séquito, realizou alguns reparos no caminho da Santa Cruz. É o que informa o correspondente do jornal Diário de Notícias, da Bahia, edição de 7 de junho de 1893: “fui testemunha ocular de que quando aqui esteve [o Conselheiro] ano passado, enviou meios de fazer-se alguns reparos nas capelinhas e na estrada do Monte, daqui, a fim de não continuar na decadência em que se achava a instituição da irmandade dos Santos Passos do Senhor do Calvário, pedindo e aplicando o resultado das esmolas que recebeu para esse fim.”

Segundo a tradição, os muros que ladeiam trecho considerável do caminho da Santa Cruz, a partir da primeira capela, no início da subida, teriam sido construídos por Antônio Conselheiro e sua gente, quando da passagem do beato pela cidade de Frei Apolônio de Todi. 

No período da guerra (1896-1897), a partir da segunda expedição, a cidade serviu de base de operação das tropas legais em demanda de Canudos. Ali se instalou o quartel general do ministro da guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, o qual comandou o serviço de intendência e cuja presença no palco da luta foi determinante para o triunfo das forças expedicionárias. 

Em Monte Santo, Bittencourt adotaria uma série de medidas com vistas a aperfeiçoar a atuação das forças em operação e, consequentemente, assegurar a vitória sobre os seguidores de Antônio Conselheiro. Uma das medidas, talvez a mais importante, foi a reestruturação do serviço de transporte, até então precário, garantindo o abastecimento das tropas e diminuindo a escassez de água e alimentação. Por sua atuação no episódio, o militar foi elevado, alguns anos após a guerra, à condição de Patrono da Intendência do Exército Brasileiro.

Para facilitar a comunicação com o restante do país, uma linha telegráfica foi construída entre Monte Santo e Queimadas, as duas principais bases de operação militar. Era a primeira vez, na história do Brasil, que se utilizavam os serviços telegráficos para noticiar um conflito armado. Outros eventos ocorridos poucos anos antes, como a Revolta da Armada e a Revolução Federalista, não dispuseram da mesma cobertura.

Do teatro da guerra, as notícias eram despachadas para Monte Santo e dali expedidas via telégrafo para outras cidades do país, em especial Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, onde eram publicadas pelos órgãos de imprensa. Dos jornais que se ocuparam do caso, destaca-se O Estado de São Paulo, o qual teve como enviado especial o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões. 

Aliás, dentre os cronistas que cobriram a guerra, Euclides foi o que mais tratou de Monte Santo, levando a elegante urbe para as páginas consagradoras da sua obra imortal. Na correspondência do dia 6 de setembro de 1897 (a primeira ali redigida), o escritor não esconde sua fascinação diante da povoação que vê pela primeira vez: “Ninguém pode imaginar o que é Monte Santo a três quilômetros de distância (...) Não conheço nenhum de aspecto mais pitoresco que o deste arraial humilde perdido no seio dos sertões. O viajante exausto, esmagado pelo cansaço e pelas saudades, sente um desafogo imenso ao avistá-lo, depois de galgar a última ondulação do solo, com as suas casas brancas e pequenas, caindo por um plano de inclinação insensível até à planície vastíssima”.

Em crônica do dia 8 do mesmo mês (sempre para o citado jornal paulista), volta Euclides a ocupar-se da antiga vila, agora exaltando a beleza natural e arquitetônica do monte da Santa Cruz: “Com o extraordinário luar destas últimas noites o seu aspecto é verdadeiramente fantástico, destacam-se nitidamente as capelinhas brancas e à luz reflexa e dúbia da lua as vertentes, que se interrompem em paredões a prumo em virtude da própria estratificação da rocha, dão a ideia de muralhas imensas (...). 

Não demorou muito, e a cidade veio a figurar também nas páginas vibrantes d’Os sertões, a obra prima da literatura nacional: “Monte Santo é um lugar lendário (...) Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos; tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada em degraus ou rampeada, aquela estrada branca, de quartzito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das procissões da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa”. 

Em 1973, no auge da ditadura militar, o exército foi de novo a Monte Santo, dessa feita para treinar tropas, com vista ao combate a eventuais ações guerrilheiras. Ali permaneceu por cerca de uma semana, realizando manobras militares e sobrevoando a região. Na ocasião, um busto do marechal Bittencourt foi fixado em frente ao edifício da antiga prefeitura municipal, a mesma que outrora servira de sede ao quartel-general das forças expedicionárias. 

O retorno do exército à área do conflito levou pânico e medo à população sertaneja, a qual ainda guardava na memória as marcas da tragédia de 1897. A presença das aeronaves, com seus voos rasantes e ensurdecedores, cobriu de susto os moradores de Monte Santo, que, apreensivos, se questionavam sobre o porquê de tão agitada operação. Operação que poderia ter transcorrido sem maiores incidentes, se não fosse o histórico de violência praticada pelo exército contra a brava gente sertaneja.

No inicio dos anos 1980, foi removido para Monte Santo, sob patrocínio de autoridades locais, o famigerado canhão Withowort 32, conhecido pelos sertanejos como “a matadeira”. Postado na praça central da cidade, ali divide espaço com a estátua do Conselheiro e com o busto do marechal Bittencourt.

Na mesma década, também em Monte Santo, despontava o Movimento Histórico de Canudos, tendo como objetivo, entre outras coisas, o resgate da memória sertaneja e a revalorização da missão do Conselheiro.

Não há dúvida de que a localização geográfica e a condição de cidade santuário contribuíram para que Monte Santo, desde o início, assumisse o protagonismo no que diz respeito aos fatos de Canudos. Mas o protagonismo de Monte Santo se deveu, acima de tudo, à presença de sua gente no arraial de Canudos, onde, ao lado do Conselheiro, empenhou-se até o fim na luta por uma sociedade justa, fraterna e solidária. 

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