30 de dez. de 2016

DO DIÁRIO DE UM SERTÃO

*Rangel Alves da Costa

POÇO REDONDO, SERTÃO SERGIPANO DO SÃO FRANCISCO, SITUADO NO POLÍGONO DAS SECAS, NA REGIÃO SEMIÁRIDA DO NORDESTE, CARACTERIZADO PELA VEGETAÇÃO ARBUSTIVA NORDESTINA, COM PREDOMINÂNCIA DE CACTÁCEAS. AS ESTIAGENS, COM SECAS PROLONGADAS, PERDURAM POR ANOS SEGUIDOS.


Estrada de asfalto nas rodovias e principais áreas de acesso. Estrada de chão poeirento e espinhento nos demais interiores e ao redor das povoações. Veredas que se alongam em meio ao que restou da mataria. Mas tudo como um campo aberto pelo desmatamento e morte das plantas pela ausência de chuvas.

O sol começa a afoguear já nas primeiras horas do dia. As noites já não são tão refrescantes como noutros tempos. Ao aproximar-se o meio-dia então tudo se transforma em fornalha. No céu sem nuvens, apenas o clarão que desce em quentura e desolação. De canto a outro e nunca se avista uma formação chuvosa.

Casebres e casinholas de beira de estrada e mais adentro, tudo parece abandonado. Casa fechadas ou de porta batendo sem aparecer vivalma. Mas os moradores continuam nos mesmos lugares onde estiveram, só que agora sem o ânimo para aparecer na janela ou caminhar fazendo uma coisa e outra pelos arredores ou na malhada.

São poucos, mas ainda são avistados os bichos próprios desse sertão. Ali e acolá andeja uma vaquinha magra, ossuda, tropeçando no próprio passo. Mais adiante um cachorro magro deitado a pouca sombra de um umbuzeiro. Jegue, cavalo, burro, tudo num só sofrimento pela falta do pão da terra e da fonte. Não há mais água e nem capim.

Comer o que? O que o bicho vai comer ou beber? Eis o santo sacrifício de tudo. Menino passa fome, mulher passa fome, velho passa fome, mas com o bicho é diferente. Assim diz o sertanejo. E por isso seu sofrimento quando já não há palma, não há resto de folha, não há qualquer broto no chão.

Da porta adentro uma tristeza só. Nada sobre o fogão de lenha. Num canto uma menina bonita brincando com uma velha boneca sem braços. Noutro canto um menino bonito brincando com ponta de vaca. Mas como conseguem brincar e até sorrir diante uma situação dessas?

Passa um calango correndo. Tem que correr para não acabar assado no fogo de chão. Não há caça nem fruta do mato. Desde muito que o preá deixou de correr pelos arredores e não há mais codorna ou nambu. A mata sertaneja já não existe. E onde não existe mata não pode existir caça, passarinho, avoante ou qualquer ser que faça ninho ou pouse no pé de pau.

Ante a seca devastadora, já não se consegue avistar plantas nativas nem aquelas que suportam as estiagens mais prolongadas. As catingueiras são magras, definhadas, acinzentadas e desnudas.

As cactáceas como o mandacaru, o xiquexique, a palma, o facheiro e a jurubeba, mesmo sendo adaptadas aos climas mais áridos e secos, já não suportam a força do sol e a queimação do calor. Igualmente a demais vegetação, também vão morrendo aos poucos.

Mas o sertanejo é o mesmo. E continua mais forte. Não haveria que se pensar diferente quando o sofrimento é tão grande e devastador e ele continua adiante da porta, no meio do tempo e debaixo do sol, tentando avistar nuvem de chuva, sonhando com pingo d’água, fazendo planos para o futuro.

Mas em Poço Redondo já são quatro anos de seca. Oito dias sem um pingo d’água na torneira. E agora sem água mineral pra vender. Só restam as bolhas de suor da luta. E quando acabar o suor?

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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