*Rangel Alves da Costa
O descuido provoca a destruição, não há como discordar de tal assertiva. Do mesmo modo, o desconhecimento da importância de coisas, relíquias e objetos, acaba com a desvalorização dos mesmos. Por consequência, aquilo que mais tarde poderia servir como boa recordação tem sumiço antes que se torne saudade.
Tais afirmações se voltam para uma perspectiva de sertão, de uma terra de inigualável riqueza histórica, mas cuja população parece não se dar conta de que sua vida e da vida familiar, bem como da própria feição sertaneja, pode ser guardada para as futuras gerações através da preservação de pequenas coisas. Simples objetos pessoais ou de uso familiar, bem como retratos, móveis e utensílios de uso cotidiano, mais tarde poderão servir para retratar um tempo passado.
A voracidade do tempo e os modismos vão apagando tudo numa rapidez quase sempre indesejada. Nada mais tem tempo de ficar velho, de ser colocado num canto após tanto uso, pois nada mais dura além do tempo de surgimento do novo. É o próprio espelho social que reflete o chamado aos modismos, a tudo que surge como novidade. O apelo é tanto que a maioria das pessoas, por vergonha ou vaidade, dá tudo de si para ter o que está sendo usado na novela televisiva.
Tal enxurrada modista, contudo, é de recente surgimento. Ao menos no sertão sergipano. Até os anos 80 ainda se valorizava o jeito próprio de ser e havia um cuidado especial – de amor mesmo – com cada objeto que guarnecia o lar da família. O apego era tanto que somente pela inevitabilidade do desgaste, coisas e objetos eram trocados por novidades. Mesmo assim não se jogava ao lixo aquilo que havia feito parte de gerações. Sempre havia um cantinho na casa para abrigar as relíquias.
Para uma ideia clara do que vem acontecendo, basta citar uma velha calça como exemplo. Não faz muito tempo que as roupas de uso, principalmente aquelas usadas nos ofícios do dia a dia, eram cuidadas com carinho todo especial. Desgastadas, velhinhas, quase sem cor, mas ainda assim sempre lavadas, passadas a ferro, cuidadosamente dobradas. E mais: remendadas todas as vezes que surgisse um buraquinho no tecido. Hoje em dia, antes mesmo que ela desbote logo vem o filho ou a filha para jogar no lixo. E coloca no seu lugar uma nova, de marca.
Outro exemplo. São raras as residências onde os armários e baús ainda guardam as recordações familiares. Costumei frequentar as casas sertanejas e sempre encontrava não só retratos de avôs, avós, pais e mães, de gerações inteiras, belamente emoldurados nas varandas, salas e quartos. Não só retratos de pessoas como figuras de santos, oratórios, jarros com flores de plástico, porta-retratos por cima de móveis de madeira envernizadas pelo tempo, até mesmo baús e pilões dos tempos da escravidão.
Hoje em dia é muito difícil encontrar algo assim. As casas estão enfeitadas com quadros de lojas, os móveis deixaram de ser de madeira para se tornarem de material prensado e frágil, os sofás coloridos e pouco duradouros, televisões de plasma, local para o computador e outras inovações tecnológicas. Tudo isso na mesma casa onde já avistei mesa de madeira de lei, tamborete, rede armada na varanda, oratório, santos de madeira por cima dos móveis, maravilhosos baús trabalhados à mão, verdadeiras relíquias de feições sertanejas.
Sim, verdade que os novos tempos chamam ao novo. Verdade que muitas dessas pessoas passaram até a se envergonhar dos objetos que guarneciam suas casas. E pensando na transformação como acompanhamento da realidade, acabaram trocando tudo por móveis e coisas de falsa beleza e cuja duração nem sempre vai além do pagamento da última prestação. E agora pergunto: o que fizeram das relíquias do passado, daqueles móveis maravilhosos, daqueles objetos que contam toda uma história?
Lamentável que hoje seja difícil encontrar qualquer antiguidade nas residências sertanejas, nem de uso nem por estar guardada. Candeeiro, lamparina, alguidar, suporte para bacia de lavar mãos, baú, oratório, cristaleira, tamborete, castiçal, jarro antigo, cabaças, cumbucas, tudo isso se tornou comumente difícil de ser encontrado. Até mesmo os retratos de família deixaram de enfeitar as paredes.
Quando indagados sobre os objetos antigos, os mais velhos geralmente afirmam que não sabem mais onde estão, que acham que deram fim. Quando perguntados sobre o mesmo, os mais jovens repetem que acabaram jogando no lixo tanta velharia. Quer dizer, com a desculpa de faxina e embelezamento, toda a história vai sendo menosprezada, relegada, jogada nos entulhos, se apagando de vez.
Não sabem, pois, que a história, a verdadeira história de um povo, é feita de retalhos. É feita de pedaços das tradições, dos costumes, dos usos, dos objetos, de tudo aquilo que fez parte da vida pessoal, da família, do meio social onde se gesta a vida. Há que se dizer que a vida é a história de tudo, de todo o percurso, e que por isso mesmo se afeiçoa a um museu. E não há museu da existência que faça entender o passado através somente do novo.
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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