19 de fev. de 2016

DESPEDIDAS, SENTINELAS E INCELENÇAS

Por Rangel Alves da Costa*

A morte é um fato triste, angustiante demais. Os povos se despedem dos seus segundo suas próprias crenças, tradições e costumes. Há sociedades que festejam ao invés de prantear, não significando alegria, mas na crença de que assim o ente querido não levará consigo o remorso da ausência terrena. Noutras sociedades os prantos e os rituais se prolongam por semanas inteiras, até que o morto esteja devidamente preparado para enfrentar o além.

No Brasil não há muitas variações de despedidas. Comumente a tristeza pelo acontecido, o último adeus no velório e os lamentos incontidos durante o cortejo fúnebre e a descida ao último leito. Nem sempre acontece missa de corpo presente nem acompanhamento de toda a família. Também pelo fato de que os velórios saíram das residências para os velatórios que se espalham pelas cidades.

Há de se considerar ainda que o sentimento pelo desaparecimento de um parente ou amigo não mais possui o pesar de outros tempos. Ao menos exteriormente, as feições dos que ficam não se mostram tão carregadas de consternações. Constata-se isso nos velórios que mais parecem silenciosas reuniões do que mesmo um momento de expressão maior de tristeza. Logicamente que nem sempre ocorre assim, pois situações existem onde familiares só faltam mesmo querer tomar o lugar do defunto.

Foi-se o tempo das vertigens, das agonias, dos gritos incontidos, dos descabelamentos, dos adormecimentos por força de remédios, do quase enlouquecimento, do choro incontido, das faces feridas pelo sofrimento, da descrença momentânea na divindade, dos lenços e roupas encharcados, do mundo parecendo querer acabar. Há pranto, há dor, há sofrimento, mas não mais expressado como noutros tempos. Talvez a concepção da morte como destino e não como um fim, tenha possibilitado uma nova forma de enfrentamento dessa dura realidade.

O sertão nordestino caminha para essa nova realidade do enfrentamento da morte, ao menos nos centros urbanos das cidades mais desenvolvidas. Nestas, poucos são os velórios feitos ainda nas residências familiares, pois mesmo uma cidade pequena não deixa de ter um ou dois velatórios. Na ausência de missa de corpo presente - pois tal ofício se volta apenas para defuntos mais importantes histórica ou socialmente -, geralmente o caixão é levado até a igreja e daí segue em cortejo até o cemitério. Nas cidades menores permanece o ecoar pesaroso dos sinos, dobrando melancolicamente para anunciar os falecimentos.


Tornou-se raridade, mas nas lonjuras nordestinas ainda se proporciona uma despedida decente e ao modo dos antepassados. Nas distâncias sertanejas ainda se reverencia o morto com todas as honrarias matutas. Os amigos logo chegam, choram a despedida, tecem recordações de amizade e permanecem pela noite inteira e madrugada adentro na residência do pranteado, só que do lado de fora, ao redor de fogueiras, bebendo o morto. Lá dentro, ao redor do caixão, iluminados pelas velas que crepitam entristecidas, familiares e amigas, principalmente as mais idosas, entoam cantos fúnebres até o momento da partida.

A sentinela de adeus se transforma então no ecoar aflitivo e triste de ladainhas e rezas de encomendação da alma. Os cantos são tão compassados e melancólicos que tudo ao redor parece se transformar num manto de dor. As velas chamejam, os lenços são levados aos olhos, os olhos descem sobre o caixão, a boca se abre para a ladainha, e assim a estrada do falecido vai sendo aberta rumo ao lugar merecido. Até que o sol surge para mostrar olhos já quase sem lágrimas para molhar a terra enquanto a pá vai jogando areia sobre o caixão.

Daí todo o encanto, embora por dolorosos motivos, dos autênticos velórios sertanejos. Mas nada mais comovente que as sentinelas que adentram a noite e varam a madrugada com aquelas vozes ecoando lamentos. Mesmo ao longe, as preces, rezas e orações são ouvidas numa plangência de cortar coração. Velhas senhoras com seus terços e rosários, seus véus negros e feições entristecidas, encomendando a alma do morto através das incelenças. Estas são cânticos recolhidos do tempo para ajudar na passagem do morto.

Então as incelenças ecoam em triste plangência: “Uma incelença de Nossa Senhora/ Pega essa alma, entrega na glória/ É de levar, é de levar/ Esse presente pra Nossa Senhora/ Duas incelença de Nossa Senhora/ Pega essa alma, entrega na glória...”. E também no caminho do velório, já arribando em direção ao cemitério: “Lá se vai a alma/ Vai junto nosso pranto/ Nada mais acalma/ Oh triste desencanto/ Alma tão bondosa/ Que triste desencanto/ Oh Mãe Graciosa/ Cubra com seu manto...”.

E muitas vezes o luto, muitas vezes a dor demorada, difícil de acabar. É também um sentimento diferenciado, verdadeiro, de um amor profundo que se prolonga além da morte. Os dias de finados sintetizam bem esse querer preservado no tempo, mesmo que muito tempo já havia se passado da despedida. Nos cemitérios, perante as covas, as flores e as velas adornam a saudade, enquanto os olhos se derramam em lágrimas. E o coração ainda chama, ainda deseja a presença.

Poeta e cronista
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3 comentários:

  1. Meu caro companheiro Mendes: Aqui o Escritor Rangel Alves Costa apresenta uma perfeita descrição sobre a morte, inclusive o dia em que o SER HUMANO tem os laços da vida cortados, e passa a viver em outra Esfera.
    É verdade ilustre chefe Rangel: Nada é mais frágil na vida, do que a própria vida. É uma estrada que não tem fim. Uma estrada sem interrupção. Estamos todos numa mesma e enorme fila. Nenhum de nós pede para ficar na frente do outro. É uma vanguarda que ninguém deseja, mas não a dominamos nem temos voz para tal decisão. Se nos fossem permitido, gostaríamos de permanecer na retaguarda, mas não é como queremos.
    Quanto à tristeza no velório e nos dias seguintes, está mesmo tudo mudado. Há 56 anos quando meu pai faleceu, e eu fiquei com QUINZE, vestir luto fechado por SEIS meses, e mamãe usou a cor negra fechada por UM ANO, para depois começar a variar para preto e branco. Hoje, no dia seguinte vestem-se vermelho, amarelo ou qualquer outra cor. As coisas mudam e, por aí vamos ANDANDO.
    Antonio Oliveira - Serrinha


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  2. Desculpem leitores do Mendes: na segunda linha do último parágrafo, escrevi a palavra VESTIR. Seria VESTI.
    Antonio Oliveira

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  3. Antonio de Oliveira, isso acontece com qualquer um de nós. Devido um pouco da minha cegueira, tenho trocado algumas letras.

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