Por Clovis Guimarães Filho
Ex-chefe de P&D da EMBRAPA SEMI-ÁRIDO e consultor do SEBRAE-PE
A estratégia mais indicada para viabilizar a ovino e a caprinocultura de base familiar praticadas nas zonas mais secas da região semi-árida deve se basear na diferenciação dos seus produtos, a ser fundamentada no estabelecimento de normas que definam e orientem o processo de sua certificação. O DOC (Denominação de Origem Controlada) e o IGP (Indicação Geográfica Protegida), tipos de certificação que já existem em vários países, sobretudo na Europa, seriam não apenas esses instrumentos de agregação de valor a esses produtos, mas, sobretudo, constituiriam os requisitos básicos para o seu reconhecimento e proteção. São certificados com o DOC, por exemplo, todos os produtos cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos aí fatores naturais (solo, clima) e/ou humanos (tradição, cultura). Em outras palavras, deve haver uma clara ligação estabelecida entre o produto, o território e o talento do homem (o “saber-fazer”).
A concepção desses produtos a certificar deve resultar de um processo natural de construção social, refletida na sua identificação com o território de origem em suas dimensões geográfica, histórica e cultural. O produto apresentaria forte apelo mercadológico, especialmente em função da sua relação harmônica com o meio ambiente. Entretanto, características como essas precisam ainda de uma construção pelo “marketing”, posicionando este produto no mercado através de trabalho de comunicação mais amplo sobre sua imagem. É isso que é praticado por um sem número de países com vários produtos das regiões mais desfavorecidas, onde predominam pequenos agricultores familiares.
Quase toda as partes norte e leste de Portugal estão zoneadas para produção de ovinos e caprinos com denominações de origem e indicações geográficas protegidas. O “borrego Serra da Estrela”, o “cordeiro Bragançano” e o “cabrito da Beira” são algumas dessas marcas. Na Espanha destaca-se o famoso cordeiro “ternasco de Aragón”. Na França, podem ser citados os queijos “roquefort“ (de leite de ovelha) e “chabichou du Poitou” (de leite de cabra). Dezesseis por cento da produção queijeira da França tem certificação de origem. A Argentina conta com o seu “cordero patagón”. Embora não possa ainda ser caracterizada exatamente como um produto com denominação de origem, no Brasil existe uma iniciativa similar na região de Herval, RS, com a comercialização do “cordeiro Herval Premium”. No país só existe um produto com certificação de origem, o vinho do Vale dos Vinhedos, RS. Outras iniciativas em busca dessa certificação estão em andamento, entre elas duas relativa ao mel de abelhas de São Raimundo Nonato, PI, e o queijo da Serra da Canastra, MG.
Para obter o reconhecimento e utilizar o selo de denominação de origem, o produtor deve atender um conjunto de exigências contidas no “caderno de normas e especificações”. Nele são registrados o nome do produto, sua descrição, delimitação da área geográfica, provas de origem, descrição dos métodos de produção, sistema de controle e as exigências a serem cumpridas para obtenção do certificado e uso do selo. O cumprimento dessas normas e especificações é fiscalizado por certificadoras independentes credenciadas. Como seria, por exemplo, um cabrito tipo carne com certificação DOC que o semi-árido pudesse ofertar ao mercado? Antes de tudo, o produto precisaria ter uma “marca”, tipo "cabrito ecológico da caatinga", mais abrangente, ou tipo "cabrito do Moxotó”, circunscrita a um espaço menor. O importante para o produto seria definir suas especificidades e vinculá-las a uma ou mais características próprias daquele espaço. O meio geográfico marca e personaliza o produto, pelo que a delimitação da zona de produção torna-se pré-requisito indispensável. O “sabor da caatinga” implícito na carne do cabrito viria da sua associação com a vegetação de caatinga de que se alimenta, pelo menos em parte de sua vida, ou com uma determinada raça ou ecotipo nativo e/ou, ainda, com uma maneira tradicional e peculiar de abater e beneficiar o animal, como a “manta seca retalhada”. Este tipo de “saber-fazer” poderia ser valorizado como uma especificidade, contribuindo na definição de um produto para um espaço geográfico específico onde essa prática se destacasse.
O zoneamento do Semi-Árido, portanto, torna-se um procedimento essencial para fundamentar um processo de identificação e delimitação espacial das potenciais marcas de cabritos e borregos, com base em suas especificidades ligadas a fatores naturais e/ou culturais de cada espaço. A criação de uma ou mais marcas de “cabrito ou cordeiro ecológico da caatinga” enfatizaria as relações do animal com o bioma, utilizaria um mínimo de insumos externos e valorizaria e preservaria as raças nativas, mesmo que esses fatores limitassem a possibilidade de um abate mais precoce, em função de um desenvolvimento ponderal um pouco mais lento dessas raças. Isto não constituiria problema, já que essa aparente desvantagem poderia ser neutralizada pela produção de carcaças mais leves ou largamente compensada tanto pelos menores custos operacionais e de investimentos quanto pelo maior valor agregado ao produto pelas suas especificidades mercadológicas.
Um produto efetivamente diferenciado e impossível de ser imitado como esse (onde não há caatinga não se pode produzir o “sabor da caatinga”) poderia se constituir em importante alternativa de resgate social e econômico do caprinocultor e do ovinocultor da região semi-árida, e de reversão do acentuado processo de degradação dos recursos naturais que atinge esta região. Redes de supermercados confirmam seu interesse em trabalhar com um produto caprino ou ovino dessa natureza, com certificação de origem. O sucesso de um programa como esse exige, além, naturalmente, do estabelecimento de normas e serviços que regulamentem e operacionalizem o processo, o fortalecimento das associações de produtores a estruturação de redes locais de apoio técnico e a implantação de uma linha de crédito específica, adequada à natureza e à capacidade remuneratória de capital dessas atividades.
Este conjunto de ações deve privilegiar espaços supramunicipais ocupados pela agricultura familiar, onde haja elementos potenciais de identidade coletiva e outros ativos e fatores diferenciais que permitam desenvolver novos negócios relacionados com agregação de valor, com aproveitamento de tipicidades locais/regionais e dos patrimônios culturais e sociais específicos. Seria uma forma alternativa de inserção do produtor de base familiar na lógica adversa do mercado convencional.
Publicado pelo Observanordeste em outubro de 2004.
Enviado pelo professor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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