Marinheiro era ainda mais jovem que Criança quando entrou no cangaço. Foi em 1936, ele estava com treze anos.
— Fui chamado pelo meu cunhado Zé Sereno. porque a volante queria me caçar. Depois que minha irmã Cila resolveu acompanhar o Zé, minha família passou a ser perseguida.
Até então, Marinheiro era vaqueiro de seu tio China, na Fazenda Recurso, em Sergipe. Voltou a ser vaqueiro depois do cerco de Angico, do qual escapou "correndo como louco no meio das volantes". Estava transtornado. Vira Maria Bonita morrer, bem de perto.
— Ela estava desarmada, nem pôde se defender.
Como Zé Sereno, Marinheiro foi trabalhar na fazenda dirigida pelo Sargento Cardoso. De lá seguiu a mesma trilha: Palestina, Martinópolis, São Paulo. No começo, em São Paulo, a vida foi muito dura. Por dez anos, trabalhou na lavoura. Depois. passou para a indústria química, onde está até hoje. Vive satisfeito com o trabalho, com a vida.
— O cangaço era um inferno. Nem se podia dormir. Mas a gente não tinha outro jeito, não tinha encolha. Aqui a gente tem liberdade e pode dormir sossegado.
Marinheiro casou-se com a filha de um ex-volante, mora em casa própria. As filhas mais velhas, Maria José, de vinte anos, e Ivani, de dezessete, trabalham para ajudá-lo. Um dos meninos, Isaurino, está no quarto ano primário, e o outro, Wilson, de seis, saiu agora do jardim de infância.
— Se Deus quiser, eles vão ter na vida o que o pai não pôde ter. Marinheiro foi um dos raros cangaceiros que jamais sofreu um ferimento de bala. Corria no sertão que ele tinha "corpo fechado", fora encantado para ficar imune a tiro ou golpe de arma branca. Ele jura que não.
— Eu não tenho não. Mas tem muita gente que tem.
"O que passou, passou"
Zé Sereno é muito católico, organiza romaria todos os anos, em outubro, a Aparecida do Norte, sua padroeira. A mulher, Sila, é espírita, médium, mas ele é devoto da santa; usa sempre, fora da camisa, uma medalha de Nossa Senhora Aparecida. É outro homem, diferente do cangaceiro Zé Sereno. Agora sabe ser tolerante. Após a apresentação ao ex-volante Adriano, fechou o rosto, contrariado, mas logo se descontraiu, abriu a guarda. Passada a surpresa, abre os braços, aceita a confraternização com Adriano, vai abraçá-lo.
— Não guardo rancor. O que passou passou.
Adriano agora sorri, ainda surpreso, incrédulo, é como se visse um fantasma — o homem que êle procurara tanto estava ali diante de seus olhos. Também é sensível à reconciliação, abraça o antigo inimigo, procura explicar as razões da mudança de atitude.
— Eu tinha raiva mesmo era do coiteiro. Ele é que foi perverso. Vocês estavam na vida de vocês mesmo. Eu compreendo. Se eu achasse aquele coiteiro, agora, ele ia ver.
Zé Sereno está mais animado. Puxa o antigo volante para o lado, oferece-lhe uma batida, Adriano aceita, os dois bebem, começam o bate-papo. O cangaceiro intercala o diálogo com as mesmas expressões. — O que passou passou. Adriano quer explorar o terreno. Faz sondagens. Arrisca:
— O que eu queria mesmo é saber por que aquele coiteiro me mandou desviar do caminho. Você que mandou, Zé?
— De jeito nenhum, Adriano. Pra dizer a verdade, nem me lembro bem de quem era o coiteiro. Só sei que você tinha fama de delatar cangaceiro, e queria nos pegar. Os coiteiros é que diziam.
— Não é verdade, Zé. Eu vivia minha vidinha até aquele dia em que você e mais quatro me amarraram e fizeram o diabo comigo. Aí eu resolvi entrar na volante e ser contra vocês.
Zé Sereno desconversa, se desculpa, tenta recompor o passado.
— Os coiteiros às vezes falavam demais e mentiam pra gente. Sabe como é que é. A gente vivia num aperto danado, não podia descuidar.
— Não guardo rancor. O que passou passou.
Adriano agora sorri, ainda surpreso, incrédulo, é como se visse um fantasma — o homem que êle procurara tanto estava ali diante de seus olhos. Também é sensível à reconciliação, abraça o antigo inimigo, procura explicar as razões da mudança de atitude.
— Eu tinha raiva mesmo era do coiteiro. Ele é que foi perverso. Vocês estavam na vida de vocês mesmo. Eu compreendo. Se eu achasse aquele coiteiro, agora, ele ia ver.
Zé Sereno está mais animado. Puxa o antigo volante para o lado, oferece-lhe uma batida, Adriano aceita, os dois bebem, começam o bate-papo. O cangaceiro intercala o diálogo com as mesmas expressões. — O que passou passou. Adriano quer explorar o terreno. Faz sondagens. Arrisca:
— O que eu queria mesmo é saber por que aquele coiteiro me mandou desviar do caminho. Você que mandou, Zé?
— De jeito nenhum, Adriano. Pra dizer a verdade, nem me lembro bem de quem era o coiteiro. Só sei que você tinha fama de delatar cangaceiro, e queria nos pegar. Os coiteiros é que diziam.
— Não é verdade, Zé. Eu vivia minha vidinha até aquele dia em que você e mais quatro me amarraram e fizeram o diabo comigo. Aí eu resolvi entrar na volante e ser contra vocês.
Zé Sereno desconversa, se desculpa, tenta recompor o passado.
— Os coiteiros às vezes falavam demais e mentiam pra gente. Sabe como é que é. A gente vivia num aperto danado, não podia descuidar.
Uma invenção que pegou
O almoço demora, Adriano toma a iniciativa de pedir "mais uma". Há uma surpreendente facilidade de comunicação entre o ex-cangaceiro e o ex-volante. Os dois agora recordam casos e combates. Zé Sereno quer saber se Adriano esteve na "brigada de Maranduba".
— Não, não estive, mas estava bem perto. Soube dos estragos. Vocês perderam três cabras, né?
— Perdemos, mas a volante perdeu muito mais. Morreram mais de quinze macacos. Adriano não gostou do termo "macacos". A súbita cordialidade está sob ameaça. Indaga com ar de reprovação:
— Por que vocês costumavam chamar os soldados de macacos?
— Isto quem inventou foi o Capitão. E pegou. Pra ele toda volante era macaco. Como é que você queria que a gente chamasse uns homens que estavam sempre na nossa persiga?
Adriano agora faz sinal de que concorda. Zé Sereno ganha fôlego.
— A volante é que fabricava mais cangaceiro. Está vendo aqui? — aponta para o cunhado, Marinheiro.
— Esse menino, com treze anos, teve que entrar no cangaço pra não morrer dependurado numa árvore.
A hora é de expiação de culpas. Adriano não revela o menor desejo de defender a volante. Já dissera que entrara na polícia apenas por desejo de uma desforra pessoal. Ouve atentamente Zé Sereno, faz-lhe uma confissão.
— Sabe de uma coisa, Zé? Volante e cangaço era tudo igual. Os dois atrapalhavam a vida do povo.
— Não, não estive, mas estava bem perto. Soube dos estragos. Vocês perderam três cabras, né?
— Perdemos, mas a volante perdeu muito mais. Morreram mais de quinze macacos. Adriano não gostou do termo "macacos". A súbita cordialidade está sob ameaça. Indaga com ar de reprovação:
— Por que vocês costumavam chamar os soldados de macacos?
— Isto quem inventou foi o Capitão. E pegou. Pra ele toda volante era macaco. Como é que você queria que a gente chamasse uns homens que estavam sempre na nossa persiga?
Adriano agora faz sinal de que concorda. Zé Sereno ganha fôlego.
— A volante é que fabricava mais cangaceiro. Está vendo aqui? — aponta para o cunhado, Marinheiro.
— Esse menino, com treze anos, teve que entrar no cangaço pra não morrer dependurado numa árvore.
A hora é de expiação de culpas. Adriano não revela o menor desejo de defender a volante. Já dissera que entrara na polícia apenas por desejo de uma desforra pessoal. Ouve atentamente Zé Sereno, faz-lhe uma confissão.
— Sabe de uma coisa, Zé? Volante e cangaço era tudo igual. Os dois atrapalhavam a vida do povo.
O almoço começa a chegar, bem à nordestina: cabidela de galinha, peixe e camarão no coco, vatapá, sarapatel. Zé Sereno senta à cabeceira da mesa. Para um ex-comandante, um lugar de destaque. Adriano vai ao bar do restaurante em busca da batida que demora. É a última, "para abrir o apetite". Volta, o grupo come, esquecido do cangaço, das "volantes"; prefere elogiar as virtudes dessa cabidela de galinha, as qualidades do peixe, as virtudes do coco, a substância de um vatapá, um sarapatel.
Chega a hora das despedidas. O volante toma a iniciativa:
— Zé Sereno, espero agora você na minha casa.
— Não, Adriano, você é que vai lá em casa.
— Mas eu tenho prazer em receber você, Zé.
Chega a hora das despedidas. O volante toma a iniciativa:
— Zé Sereno, espero agora você na minha casa.
— Não, Adriano, você é que vai lá em casa.
— Mas eu tenho prazer em receber você, Zé.
Mas Zé Sereno ainda teme uma traição.
— Lá, não. Lá eu não vou.
A custo Zé Sereno revela por que recusa o convite:
— Lá no bairro dele tem dois cabras que querem fazê a minha pele.
Adriano continua a insistir, mas o ex-cangaceiro já decidiu: não vai mesmo. Afinal, o ex-volante cede na discussão, que se prolonga por alguns minutos. Faz uma promessa:
A custo Zé Sereno revela por que recusa o convite:
— Lá no bairro dele tem dois cabras que querem fazê a minha pele.
Adriano continua a insistir, mas o ex-cangaceiro já decidiu: não vai mesmo. Afinal, o ex-volante cede na discussão, que se prolonga por alguns minutos. Faz uma promessa:
— Está bem, Zé Sereno. Vou lá comer um sarapatel quando você matar aquele porco que está cevando no fundo do quintal.
O instinto venceu
Longe de Adriano, já de volta a casa, Zé Sereno se dispõe a revelar os nomes dos homens que querem "fazer a sua pele". Um, o ex-volante Euclides Marques, suposto matador de Maria Bonita. Ele fica mais tranqüilo ao ser informado de que Euclides cumpre pena num presídio de São Paulo, por ter assassinado a esposa. E o outro nome? Zé Sereno faz certo mistério, mas acaba confessando que é mesmo o do ex-volante Adriano. Nesse instante o instinto do cangaceiro ressurgiu no pacato zelador de colégio.
— Sabe? A gente precisa ter certo cuidado. A pior coisa é traição.
FIM
— Sabe? A gente precisa ter certo cuidado. A pior coisa é traição.
FIM
Lampião e seus cangaceiros adoravam fotografias. No grupo estão os sobreviventes de Angico: Sila (segunda à esq.) , Zé Sereno (terceiro) , Criança (quinto) e Marinheiro (sexto).
FONTE DA MATÉRIA:
Revista Realidade de Janeiro de 1969
Revista Realidade de Janeiro de 1969
Reportagem de Cristina Mata Machado e Humberto Mesquita.
Fotos de Jorge Bodanzky
Facsímiles cedidos por Geziel Moura, de revista de sua coleção particular.
Fotos de Jorge Bodanzky
Facsímiles cedidos por Geziel Moura, de revista de sua coleção particular.
FIM!
http://meneleu.blogspot.com.br/2016/02/a-vida-depois-do-cangaco.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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