*Rangel Alves da Costa
“Oi da casa. Abra sem medo. Apenas um velho e cansado viajante que bate à porta. Oi de casa. Abra sem medo. Venho com Deus e na sua bondade é que bato à porta...”.
Casebre de fim de mundo. Distante de tudo, com apenas uma estradinha de passagem e caminho pra todo lugar. O cavalo passava a galope, o burro levando peso no lombo, o carro-de-boi gemendo, assim a vida passando adiante. Mas muito difícil de um daqueles viajantes bater na madeira da porta para qualquer coisa, uma caneca d’água ou informação.
Alguém bate à porta. Lá de dentro não há como duvidar. E diz que é de bem, que é apenas um velho e cansado viajante. Mesmo sozinha, nada demais em ir saber o que o forasteiro deseja. Mas com muito cuidado.
“Oi de fora, oi de fora. Já ouço o seu bem dizer. Se vem com Deus chega em paz, e não há o que temer quem vem por ele guiado. E com sede não fica não. Olhando pro umbuzeiro logo adiante vai avistar uma quartinha d’água. E mais em riba uma caneca. Pode beber de matar a sede...”.
A porta, contudo, continua fechada. A experiência matuta faz da preocupação o melhor remédio para surpresas desagradáveis. A voz do outro lado, se dizendo cansada, parecia mesmo ser de pessoa de bem. Mas nunca é demais o cuidado, principalmente quando se está sozinha. No passo seguinte, a voz do viajante:
“Por Deus Nosso Senhor seja louvada tão bondosa criatura. Não há com o que pague a quem mata a sede de quem vai passando cansado e sedento. Já avisto o umbuzeiro e é pra lá o meu passo. E que o bom anjo do Senhor continue guardando a senhora e sua moradia. Inté...”.
O viajante se afastou no passo seguinte. Dentro do casebre, rente ao outro lado da porta, a mulher ouvia o caminhar por riba do mato rasteiro e seco. Não demorou muito e começou a olhar por uma fresta. E divisou o homem com a caneca à mão e se benzendo antes de despejar água da moringa.
Um homem temente a Deus, agradecido pela caneca d’água que mata a sede. Deve ser uma bondosa alma que segue um destino desconhecido. Pensou a mulher enquanto se mantinha com o olho na abertura da madeira. E depois avistou quando ele arriou o embornal num canto e se deitou naquele sombreado de paz e sossego.
A visão do envelhecido homem ali deitado logo após matar a sede, foi despertando entristecimento na mulher. Uma tristeza diferente, piedosa, como se a alma estivesse lendo além da visão. E logo imaginou a fome naquele velho, e talvez uma fome grande, de muitas léguas caminhadas sem um pedaço de nada pra mastigar.
Mas ela era pobre e nada tinha a oferecer para alimentar aquele senhor que talvez estivesse faminto. Baixou a cabeça, pensou e pensou. Os olhos molhados agora turvavam a visão do mundo lá fora. Então se encaminhou até a cozinha e se pôs a revirar em busca de alimento.
Numa lata, com a comida preparada para quando o marido fosse caçar, encontrou um pedaço de preá assado misturado a farinha seca. Era a comida mais usual por ali, a farinha seca com pedaço de qualquer coisa, de preá, rapadura, de nambu ou codorna. Esquentou um café e lá se foi rumo à porta. E, já do lado de fora, gritou:
“Meu sinhô, ô meu sinhô. Se dorme se alevante, se puder chegue até aqui. Tenho um pouco de comida e um tantinho de café. É pouca coisa, mas tudo que na fartura é riqueza. Pensei que além da sede também estivesse com fome. Entonce aceite esse arremediação”.
O velho senhor comia de fazer os olhos brilharem. Com a mão mesmo, jogava um punhado de farinha na boca e depois tomava um gole do café. Talvez fome de mais de dia, certeza. Ali o melhor prato do mundo, a melhor comida do mundo. Aquela fome não era exigente de nada, apenas de qualquer comida. E se fez novo, pronto para seguir adiante, na sua caminhada de destino desconhecido.
“Não sei nem como agradecer, minha boa senhora. Há um céu nesse lugar e a senhora é anjo de bondade. Mas gora tenho de ir. Inté mais. Matei a sede, comi do pão, fique com Deus...”.
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