*Rangel Alves da Costa
Não se sabe ao certo por qual mão ou em qual ocasião, mas lá estava escrito, entre rasuras, rabiscos, inconstâncias, deslizes de linha a outra, tremulando como se agonizante na folha.
10h00min da noite. Sabe que vai sofrer. Ou mais uma vez sofrer, pois sempre assim. É a partir dessa hora que a visitante sai dos arredores e começa a bater à porta, a janela, a vida inteira. Ela sempre chega: a saudade!
10h05min. Não será dessa vez que irá se prostrar à saudade, é o que decide. Diz a si mesmo que não vai mais recordar nada que lhe traga sofrer, que não relembrar qualquer coisa que atormente ainda mais o seu viver. Mas dificilmente demais é domar a saudade.
10h10min. Decide que não abre mão de ter paz nessa noite. Mas a saudade é traiçoeira, fria, perigosa demais. E para alcançar seus objetivos agonizantes é que se reveste de aparências inimagináveis. Por isso mesmo que chega como canção ao vento, como um retrato que surge à mente, como a sutileza de uma voz que surge do nada.
10h30min. Sentia-se forte. Já passado das dez e ainda não tinha sentido nenhuma saudade. Preparou-se para esvaziar o cálice e depois disso deitar ali mesmo no tapete para dormir mil horas seguidas. Precisava dessa paz depois de tanto sofrer. Não deveria ser assim, mas amor provoca terríveis sofrimentos.
10h31min. De repente sentiu como se o cortinado estivesse sendo arrancado da janela pela força da ventania. Em seguida, apenas um vento leve entrando pela sala tomada de escuridão. Vento manso mas com sopro suficiente para apagar a vela. E então começou a ouvir uma velha canção. A mesma canção que sempre acompanhava a saudade mais voraz.
10h33min. A canção chegava cada vez mais forte, mais intensa, mais devastadora. Por que uma bela canção pode causar tanta dor, tanta aflição, tanta agonia? Precisamente aquela canção mais apreciada nas noites vividas a dois. Precisamente aquela doce música que embalava beijos, afagos, carinhos, carícias, buscas e encontros.
10h40min. Mais vinho no cálice. Outro cigarro. A sala pequena demais para tantos passos de canto a outro. A cortina afastada de vez, a janela escancarada, toda a música e todo sopro de vento tendo seu caminho aberto. Mas não pode ser, eu não suporto mais isso, não quero mais sofrer, dizia quase gritando.
10h50min. Gavetas reviradas, baús abertos, papéis e retratos espalhados por todo lugar. Poesias, bilhetes, cartas, fotografias de sorrisos e lágrimas, tudo espalhado pelo tapete. Uma flor murcha, um pedaço de lua guardado pela paixão. Um pingente dourado devolvido antes de a porta ser fechada. Todo o amor assim, agora em pedaços, retalhos, restos espalhados.
10h51min. A voz, a feição, a presença. Sim, pois a saudade não se compraz em fazer apenas recordar e traz a presença de toda dor. Dói demais ouvir a voz, sentir como se o antigo amor estivesse ali, querer olhar no olhar, tocar, sentir. Dói demais não poder se libertar dessa presença impossível de ser novamente amada. Agora somente saudade.
Depois das 11h00min. Ninguém ouve o soluço que mortalmente sufoca. Ninguém avista a correnteza de lágrimas que corre e escorre pelo rosto e corpo. Ninguém avista o lenço molhado jogado ao chão. Ninguém avista a feição agonizante, de olhos perdidos em mar, que tremula entre meia-luz do breu e da lua que entra pela janela.
Em meio à escuridão, a poesia que surge como o punhal mais afiado: Sozinho eu abri a porta. Não caminhei sozinho por que você chegou. E juntos caminhamos pela vida. E juntos nos amamos pela vida. Mas por que agora estou sozinho na estrada? Mas já não consigo seguir sem olhar para o que ficou pela estrada...
E depois, depois que a madrugada ouviu o último soluço, restou somente garrafas vazias, cálices quebrados, cinzas caídas ao chão, restos revirados. A janela ainda aberta, a mesma canção. Mas ninguém ali. Mas ouve-se, ao longe, um doloroso uivo de lobo solitário.
Será?
Escritor
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