Por Jornal “O GLOBO” em 08 de novembro de 1958.
O depoimento (abaixo) foi prestado ao Jornal “O GLOBO” em 08 de novembro de 1958.
CAÇA AO SABIÁ
Além de religioso, Lampião tinha-se na conta de homem decente. Gostava de mostrar isso quando se tratava de mulheres violentadas. Ele podia admitir as crueldades de José Baiano, mas nunca admitiu que um “cabra” violasse uma mulher e continuasse vivo. O amor era livre, mas o amor correspondido, nunca o amor forçado, amor de violência...
Vou, aliás, encerrar este capítulo contando um fato desses, que se deu com o bando em Lagoa do Rancho, no interior da Bahia. O bando estava acampado nesse local, quando, após alguns dias, estourou um escândalo: o dono da fazenda onde estávamos queixou-se a Lampião de que um de seus “cabras” havia estuprado sua filha. Lampião, seguido pelo bando, foi ver a filha do fazendeiro, e o quadro a que assistimos era triste: a mocinha (pouco mais de treze anos), horrorizada, chorava e estava num estado lamentável. O autor do ato bárbaro fora Sabiá, um rapaz forte, com seus dezoito anos, mais ou menos, e novo no bando.
Praticado o atentado, Sabiá, provavelmente caindo em si, fugira para o mato a uns quinhentos metros da fazenda, quando muito. Lampião, depois de ver o estado em que ficou a filha do fazendeiro, falou secamente:
- Volta-Seca e Gavião... Vão buscar Sabiá!.
- Eu e Gavião saímos à procura de Sabiá, e fomos encontrá-lo entrincheirado atrás de uma pedra grande. Não quis fugir para longe, e estava apavorado. Quando nos aproximamos, ele gritou:
- Não avancem mais um passo que abro a cabeça dos dois a bala!
Olhei para Gavião e certifiquei-me de que faria mesmo o que prometera, mas felei-lhe:
- Sabiá... O capitão quer lhe falar, e nos mandou buscar você.
A resposta não tardou:
- Pois eu não vou e vocês não se aproximem. Se o capitão quer falar comigo, que venha ele mesmo me buscar.
- Achei muita ousadia, mas não tentei capturá-lo. Seria loucura, pois estando num ponto ideal para defender-se, matar-nos-ia facilmente. Olhei para Gavião e retornamos à fazenda. Lampião, quando nos viu sozinhos, perguntou intrigado:
- Cadê ele? Fugiu?
– Não, senhor, respondi. Sabiá está entrincheirado ali embaixo, atrás de uma pedra.
– Por que não trouxeram ele? Retornou Lampião.
– Porque ele nos mata. Nós dissemos pra ele se entregar porque o capitão queria falar com ele. Mas ele disse que o senhor vá buscar ele, se quiser.
Foi a conta! A testa de Lampião franziu-se, os lábios se comprimiram e, trilhando os dentes, falou:
- Cachorro, pois vou buscar esse cão...
E mandou que eu e Gavião o guiássemos até o local onde Sabiá se encontrava.
Sabiá estava ainda no mesmo lugar, como se nos esperasse. Quando já estávamos a uma boa distância, distância esta aconselhada pela prudência, eu e Gavião paramos, mas Lampião continuou andando no mesmo passo, sem se abalar e sem dar a menor importância a nós dois.
Sabiá, ao vê-lo cada vez mais próximo, berrou:
- Pare, capitão, que eu atiro... Pare! Pare!
Lampião só parou a uns cinco metros da pedra. Segurava o fuzil com as duas mãos, na posição de soldado que se prepara para uma carga de baioneta.
Eu e Gavião, à distância, estávamos admirados com o que víamos e, por mim, digo que julguei ter chegado o fim de Lampião, pois Sabiá era um rapaz valente.
VOCÊ NÃO ATIRA EM NINGUÉM
- Não avance nem mais um passo, capitão, que eu atiro! Ninguém vai me pegar!, dizia Sabiá.
Lampião olhou-o por um momento e, de repente, falou:
- Você não atira em ninguém, menino.
E avançou. Avançou resoluto, com Sabiá fazendo pontaria para ele. A todo instante eu esperava o estampido assassino do fuzil de Sabiá, mas o tiro não saiu. Frente a frente com Sabiá, Lampião gritou:
- Atira, cachorro! Atira!
E Sabiá não atirou... Pelo contrário, arriou o fuzil. Foi seu fim, pois Lampião, rápido, deu a coronha de seu fuzil na cara do rapaz, que rolou pelo chão, ensanguentado.
Eu e Gavião aproximamo-nos depressa do local e Lampião mandou que o levássemos a fazenda. Desarmei Sabiá e, eu de um lado e Gavião do outro, levamo-lo de volta, enquanto Lampião ia à frente, a passos rápidos. Sabiá estava tonto, com a boca arrebentada e todos os dentes da frente quebrados. Sangrava muito e vinha amparado por mim e Gavião.
Na fazenda, todos se acercaram de nós. Eu sabia que a coisa ia ter um trágico, pois Lampião estava furioso. Foi feito um círculo de gente e, no meio dele, Sabiá, ladeado por mim e Gavião, com Lampião na frente, que olhava sem afastar por um segundo sequer os olhos de Sabiá. Olhava-o com ódio, sem dizer nada, e o silêncio era completo, pois ninguém ousava falar. Sabiá mal se aguentava em pé. Estava vencido. Vencido e convencido.
Lampião, então, pôs-se a falar:
- Vais morrer porque não prestas, cão. É por causa dessas coisas que falam mal da gente por aí. Mas eu te dou um exemplo, pra todos saberem que o bando de Lampião tem vergonha.
FUZILADO
E, apontando para dois empregados da fazenda, ordenou:
- Vocês dois aí, cavem um buraco para enterrar esse Cabra.
Os homens obedeceram e, de enxada em punho, puseram-se a abrir a cova. Sabiá não falava, e tenho até a impressão de que não compreendia o que se passava.
Depois de alguns minutos, a cova pronta, isto é, dada como pronta por Lampião, apesar de não ter mais de dois palmos de profundidade, mandou ele, que os dois homens parassem e, apanhando uma “Berbere”, apontou para a cara de Sabiá, que nem moveu a cabeça. Quem estava atrás de Sabiá correu para se abrigar. Lampião fez a pontaria e gritou:
- Vai-te pros infernos, cão! E deu no gatilho!
Sabiá caiu morto, mas Lampião continuou a atirar. Houve quem contasse quinze tiros... Aquela expressão:
- Vai-te pros infernos!”
Era muito comum a Lampião, quando matava alguém naquelas condições. Saciada sua fúria assassina, Lampião ordenou aos dois empregados que abriram a cova:
- Joga este peste aí! Cachorro se enterra de qualquer jeito!
Mas a coisa não acabara ainda. Lampião virou-se para mim e Gavião e disse:
- Vocês dois são os culpados, pois eu mandei vocês vigiarem Sabiá. Eu sabia que esse rapaz era malucão.
Enquanto falava, segurava ameaçadoramente sua “Berbere”, e eu senti que ele pretendia matar-nos. Mas eu não morreria como Sabiá, pus logo a mão no parabélum e respondi:
- Nós estávamos tomando conta dele, mas ele fugiu. Que é que podíamos fazer?
O fazendeiro, pai da moça, talvez horrorizado com o que assistiu, veio em nossa defesa dizendo que, de fato, ninguém deu pela coisa, pois Sabiá agira premeditadamente...
Todo mundo foi enganado, seu capitão... disse o fazendeiro.
Parecia que já tinha passado o ódio de Lampião, pois ele deu as coisas e afastou-se. Eu respirei aliviado. Sabia muito bem o que significava a sua frase: “Tanto faz matar um como mil”. Ele não parece ter ficado zangado comigo, pois no dia seguinte já me dava ordens. Aliás, a morte de Sabiá foi dramática, mas não foi a única motivada por estupro. Outros “cabras” encontraram o mesmo fim, uns nas mãos de Lampião diretamente, e outros nem essa chance tiveram, pois Virgulino mandou que outros os exterminassem.
Fonte: Jornal O GLOBO
Geraldo Antônio de Souza Júnior (Administrador do Grupo)
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