Por: Ângelo Osmiro Barreto (*)
A relação
entre religiosidade e banditismo no sertão nordestino é antiga. O sentimento
religioso do sertanejo é especialmente voltado para o culto católico, este
ainda remetendo ao catolicismo medieval, onde Deus estava ligado ao castigo, ao
fim do mundo.
Predominou por
muito tempo essa cultura religiosa nessas paragens, onde a religião ainda
repleta de superstições, os milagres ajudavam a suportar as agruras.
A ligação
entre cangaceiros e padres atingiu os dois extremos: amigos e conselheiros, mas
também ferrenhos inimigos, chegando a travarem combates bélicos.
O cangaceiro
Adolfo Meia Noite
O cangaceiro
ADOLFO DA MEIA-NOITE ainda no século XIX, após entendimentos prévios com o
Padre Bernardo de Carvalho Andrade, sacerdote que ficou conhecido como bom
samaritano dos flagelos da seca em virtude de sua atuação em favor dos
flagelados da seca de 1877, uma das mais devastadoras que aconteceu no
nordeste, conseguiu a realização de seu casamento.
Após a
realização da cerimônia o padre foi autorizado pelo cangaceiro a dizer o seu
paradeiro, pois segundo o mesmo, estava pronto para morrer sem escolher
ocasião.
Henry Koster
no seu excelente trabalho Viagem ao Nordeste do Brasil cita o padre Pedro, que
na década de 1800 mantinha em suas terras, a vinte léguas do Recife, grande
número de cangaceiros a seu serviço.
O Padre PEDRO
foi chamado pelo representante de Dom João VI para prestar esclarecimento sobre
os mesmos. Compareceu acompanhado de alguns cangaceiros armados até os dentes.
Chegando ao Recife declarou que não tinha culpa de o sertão ser violento, não
havia criado aquela situação, porém precisava de proteção, e a solução que
encontrara para se resguardar dos inimigos veio por meio dos cangaceiros.
Antes mesmo da
fama de Virgulino Ferreira da Silva, o LAMPIÃO, que ainda submetia-se ao
comando de Sinhô Pereira, ficou conhecido no sertão o ataque ao padre Lacerda
do Coité. José Furtado de Lacerda era inimigo do Major José Inácio do Barro,
esse, por sua vez, amigo de Sinhô Pereira, primeiro e único chefe de Lampião.
Aproveitando-se
da amizade com o chefe de cangaceiros, o Major José Inácio arregimenta homens
que junto aos cangaceiros do Pajeú atacaram o reduto do PADRE LACERDA . seu
grande inimigo. O combate durou cerca de uma hora e meia, sendo inclusive
ferido no mesmo, Antônio Ferreira, irmão mais velho de LAMPIÃO. Este ataque
desencadeou uma perseguição ferrenha ao Major José Inácio pelas autoridades
cearenses, que culminou com sua retirada para o estado de Goiás.
O cangaceiro
Lampião, por exemplo, manteve contatos com padres que ficaram marcados na sua
biografia. O encontro com o padre Cícero em 1926 em Juazeiro e sua relação com
o padre JOSÉ KHERLE em Serra Talhada, ambos dignos de nota.
O primeiro
encontro de Virgulino Ferreira com padres deu-se no seu batismo realizado pelo
Cônego Joaquim Monteiro Tôrres, então vigário em Floresta de Navio. Seu
relacionamento com o padre alemão JOSÉ KHERLE, deu-se em virtude dele ter sido
vigário em Vila Bela, quando das estripulias praticadas por Lampião naquele
território.
Durante 16
anos o padre KHERLE foi vigário na terra natal de Lampião. O cangaceiro
devotava-lhe grande admiração e respeito, sempre o obedecendo.
Prova da obediência que LAMPIÃO nutria pelo padre deu-se em junho de 1923 quando do casamento de sua prima Maria Licor Ferreira com Enoque Menezes. LAMPIÃO invadiu o povoado de Nazaré, distrito de Floresta do Navio/PE, acompanhado com cerca de quinze homens, dispostos a brigar com os nazarenos, seus ferrenhos inimigos.
O padre JOSÉ
KHERLE interveio pedindo a retirada de Lampião e seu bando do povoado para
evitar brigas e até mortes, pois além da aguerrida população do povoado, estava
para chegar uma força policial ao lugar. LAMPIÃO atendeu o pedido do padre
amigo, porém antes exigiu levar a sanfona, pois se ele não iria dançar, ninguém
também dançaria no povoado. Assim foi feito e por intermédio do padre JOSÉ
KHERLE evitou-se uma tragédia no pequeno povoado pernambucano.
O
relacionamento de Padre e Cangaceiro mais comentado, sem dúvida é o de
Virgulino Ferreira com o Padre CÍCERO ROMÃO BATISTA, em Juazeiro no Estado do
Ceará.
O cangaceiro,
atendendo o chamado do Dr. Floro Bartolomeu da Costa, grande amigo do PADRE
CÍCERO, uma espécie de braço armado do líder juazeirense, adentra em Juazeiro
em maio de 1926 com intuito de alistar-se no Batalhão Patriótico a fim de
combater a Coluna Prestes. Por esses tempos a Coluna vinha adentrando no sertão
nordestino.
Por motivos de
saúde o médico baiano FLORO BARTOLOMEU não se encontrava na cidade, sendo o
cangaceiro e seu bando recebidos pelo Padre Cícero. O desenrolar dessa história
culmina com a famosa patente de Capitão do Batalhão Patriótico outorgada ao
famoso cangaceiro.
PADRE CÍCERO,
também teve participação decisiva na retirada para Goiás dos cangaceiros de
SINHÔ PEREIRA (primeiro e único chefe de Lampião), neto do Barão do Pajeú e
LUIS PADRE, primos e integrantes da família Pereira de Serra Talhada, na época
em guerra com a família Carvalho.
Em setembro de
1926, LAMPIÃO adentra em Granito, estado de Pernambuco, acompanhado por mais de
cem homens. A população amedrontada procura a casa paroquial em busca de
refúgio.
O padre do
lugar reverendo JOAQUIM de ALENCAR PEIXOTO, destemido e polêmico, que inclusive
havia tido desavenças políticas com o Padre Cícero Romão, procura o cangaceiro,
mesmo antes que esse o faça. Os dois entraram na casa do padre, conversaram por
alguns minutos em particular, nunca se soube o teor do diálogo, o que se sabe é
que os cangaceiros, depois dessa conversa, vão embora e inclusive pagam todas
as despesas feitas nas bodegas da cidade.
No Ceará, em
1927, o Padre VITAL LUCENA tomaria parte da história do cangaço, dessa vez em
LIMOEIRO. Após frustrado ataque a cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte, o
grupo de facínoras adentrou a região jaguaribana no território cearense.
Chegando a cidade de Limoeiro, Lampião e seu grupo foram recebidos pelas autoridades
do lugar, que temendo saques e mortes preferem receber os bandoleiros em paz.
Entre os
membros da recepção estava o Padre VITAL LUCENA, que ficou encarregado de
arrecadar a quantia de dez contos de reis exigida pelo cangaceiro. Sob o
comando do padre, a população consegue arrecadar cerca de dois contos. O
próprio padre Vital foi incumbido da árdua missão de entregar o dinheiro
arrecadado incompleto ao cangaceiro, mas Lampião recebeu a quantia e de nada
reclamou, ficando satisfeito com a quantia recebida.
O Padre VITAL
ainda pediu um favor ao cangaceiro do Pajeú: que soltasse os reféns que vinham
presos desde o Rio Grande do Norte, o que foi negado pelo bandoleiro, alegando
precisar de dinheiro. Mesmo assim para ser agradável ao padre, soltou o refém
de nome Manoel Barreto Leite.
No dia 19 de
abril de 1929, na cidade de Poço Redondo, estado de Sergipe, o padre ARTUR
PASSOS estava tranquilamente rezando uma missa para sua comunidade quando de
repente aparece na igreja Lampião e seus cabras, num total de dez homens muito
bem armados.
O padre,
segundo seu próprio depoimento, continuou a missa, apesar de constrangido pela
presença do bando sinistro do rei do cangaço. Após a celebração religiosa o
PADRE ARTUR manteve um diálogo com o cangaceiro, tendo inclusive LAMPIÃO
deixado um bilhete de próprio punho com os nomes de todos os cangaceiros
visitantes com suas respectivas idades, exceto o de nome José Alves dos Santos,
vulgo Fortaleza, cuja idade não consta na referida carta.
Outro
interessante episódio ocorrido envolvendo padre e cangaceiro deu-se em 1937,
mas precisamente no dia 10 de outubro, quando do casamento do cangaceiro
CORISCO, o Diabo Louro, e DADÁ. Resolvido a casar com sua companheira de longas
datas, Corisco pediu ajuda de um fazendeiro amigo para trazer o padre José
Bruno da Rocha, pároco da igreja de Porto da Folha, para oficiar seu casamento.
O fazendeiro escreve um bilhete ao padre pedindo sua presença urgente na
fazenda para professar uma extrema unção.
O padre
atendeu ao pedido o mais rápido possível, ficando surpreso ao chegar ao local
solicitado e se deparar com os cangaceiros. O fazendeiro explica a situação e o
padre JOSÉ BRUNO rapidamente faz o casamento de CORISCO e DADÁ. O cangaceiro
ainda pergunta se para casar é mesmo ligeiro daquele jeito, o padre com pressa
de ir embora, apavorado com a situação, realizou a cerimônia bem mais rápido do
que o habitual.
O cangaceiro
CORISCO teria ainda uma ligação muito forte com o PADRE BULHÕES, de Santana do
Ipanema, em Alagoas, homem muito respeitado em toda a região. Ao referido padre
seria entregue seu filho SILVIO , criado pelo reverendo e hoje economista,
morando em Maceió.
PARTE FINAL:
Fato deveras
pitoresco foi contado pelo ex-cangaceiro Ângelo Roque da Costa, vulgo LABAREDA,
ao Dr. Estácio de Lima e que foi transcrito no seu livro O Mundo Estranho dos
Cangaceiros, eis o relato. Em uma fazenda no município de Santo Antônio da
Gloria, estado da Bahia, chegaram os cangaceiros onde estava havendo uma festa
com a presença do PADRE EMÍDIO, vigário do lugar. Relata o cangaceiro que
chegaram em paz, almoçaram com o padre, além dele, o chefe LAMPIÃO e ainda
Ezequiel, irmão do chefe, e Virgínio, cunhado.
Após o farto
almoço resolveu se confessar com o PADRE EMÍDIO e assim o fez. Conta o
cangaceiro que após a confissão o padre aconselhou:
"Num mate
mais os macaco, meu fio. Nos mandamentos tá proibido. Quando pegá um, você cape
ele, i sorte capado".
A correlação
existente entre PADRES e CANGACEIROS no sertão, apesar das exceções, reforça
mais uma vez o poder que a igreja representava (e ainda representa, hoje em
menor escala) para os nordestinos de um modo geral.
O respeito de
LAMPIÃO, aqui representado como o cangaceiro em geral, para com a autoridade
dos padres, traduz de certa maneira o respeito às Leis de Deus e santos
representados aqui na terra pelos sacerdotes. Dos poderes oficialmente
constituídos, a Igreja parece ser o que mais os cangaceiros respeitavam.
(*)
"ANGELO OSMIRO BARRETO", (Historiador e Pesquisador do cangaço/Membro
da Sociedade Cearense de Geografia e História- Cadeira nº 09) -
Fonte: facebook
Página: Voltaseca
Volta
Grupo: Lampião,
Cangaço e Nordeste
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