Nunca vi um Capitão fazer tanto Coronel estremecer. Melhor dizendo, vi sim: Lampião. Sim, ele mesmo, o rei do cangaço.
Desde que o padre Cícero, então prefeito de Juazeiro do Norte, Ceará, outorgou ao cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva a patente de Capitão – mesmo sem ele nunca ter sequer sentado praça - muitos coronéis do sertão nordestino passaram a pensar duas vezes antes de praticar qualquer desatino contra fulano ou sicrano.
Bonzinho ele não era, não senhor. Empesteado talvez definisse melhor o seu temperamento. E era brabo. De uma brabeza que só vendo...
Os macacos – assim os cangaceiros chamavam os policiais que os perseguiam – sabiam muito bem que tal fama tinha sólidos fundamentos. Macaco nenhum cometia o atrevimento de subestimar a fama de Lampião. Mas nem a poder de reza!
A cada investida de Lampião e seus asseclas a Polícia tentava arregimentar homens e formar uma força volante para sair no encalço dos cabras. Mas a fama de Lampião já se propagara por muitas léguas, alcançando o povoado seguinte.
Homens corajosos, com os quais se podiam contar para os trabalhos mais estafantes, preferiam descascar um dente de alho e introduzir entre as nádegas, para fazer subir a temperatura do corpo até parecer uma febre altíssima e assim justificar a impossibilidade de participar de tais empreitadas suicidas. No amanho da terra, com todo o sacrifício, ainda era melhor continuar vivo. “Posso ir não, conterrâneo; tenho meus filhinhos pra dar o de comer”.
Sobre o túmulo de Lampião alguém poderia ter colocado a seguinte inscrição: “Fez da Caatinga o seu mundo e do seu mundo essa catinga”.
Mas, na verdade, o mundo dos cangaceiros era tão ruim que só a muito custo Lampião conseguiu piorá-lo. Pouca coisa, mas piorou.
Meu avô que, certa vez, acolheu Lampião e seu bando para um almoço, aliás, preparado às carreiras por minha avó – Deus os tenha em bom lugar -, não era homem de acoitar cangaceiro, de jeito nenhum. Mas, quando o próprio chefe, de rifle às costas, se apresenta à frente do bando e pede comida para todos, é melhor relevar sua postura crítica pelo menos um bocadinho e liberar as penosas para o almoço. Vida de cangaceiro é muito sacrificada, carece de se alimentar com sustância. (E quem é que não sabe disto?)
Convencida da veracidade de tal assertiva e ainda esconjurando o último bando de ciganos que tinha reduzido visivelmente a taxa de ocupação demográfica do seu galinheiro, minha avó não poupou esforços para agradar “aqueles excomungados mortos de fome”.
Foi um almoço tipicamente domingueiro: feijão de corda, farinha de macaxeira e galinha, muita galinha. E melancia de sobra para o arremate. Repasto pra Coronel nenhum botar defeito.
Mas um negro do bando desfeiteou. Disse que era uma pena ela ter se esquecido de “botar sal na galinhada”. Viche! Pronto, foi o quanto bastou! Cabra safado! Onde já se viu? Se o oficial Capitão comeu calado e apreciou, que direito tinha aquele peste de emitir opinião pouco lisonjeira sobre a graciosa atitude da dona da casa (minha vó, já disse) que, mesmo de pernas bambas, atendera a todos com extremada generosidade. Deixa estar, esse negro vai ver...
O tal cabra foi morto por ordem do Capitão logo após se retirarem. Que fique o exemplo: hierarquia é pra ser respeitada, jamais abjurada!
Contam no Nordeste uma história que aqui vai relatada com alguns acréscimos, imitando um costume popular bastante difundido.
Lampião chama um cabra:
- Muriçoca!
- Apois sim, meu Capitão.
- Conhece o Coronel Fortunato?
(O cabra põe o rifle na posição de tiro).
- Não senhor, meu Capitão, mas já tô com raiva dele!
- Não é nada disso, cabra. Vá lá com alguns cabras buscar as armas e a munição que ele prometeu arrumar. Vá num pé e volte no outro. Se avexe...
O cabra vai saindo; Lampião o chama.
- Se ele não tiver as armas e a munição... traga a cabeça dele no embornal. Se avexe...
O cabra argumenta:
- Se o meu Capitão me permite, não foi a filha desse Coronel que mandou recado pro meu Capitão? O meu Capitão não quer mandar dizer nada pra donzela?
- Tá bestando, cabra! Maria Bonita me capa se cismar que eu ando de cochichos e arremates com filha de Coronel! Já se esqueceu da última enrascada em que você me meteu, já? Pois eu não! Ainda sinto o frio da peixeira dela, pra lá e pra cá, roçando-me as bo... Se avexe! Vá num pé e volte no outro!...
Lampião era um cabra decidido. E de uma brabeza que só vendo...
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