Por José Mendes Pereira
Todas as noites, sentado sob o telheiro da velha e desmoronada casinhola, seu Galdino Fantasias esperava a visita do Leodoro Gusmão, para lhe contar histórias de onças. Vizinhos de longos anos, quando haviam comprado propriedades no mesmo ano, e por sinal, compadres de batismo, quando na igreja de Santa Luzia em Mossoró, seu Galdino apadrinhou o filho mais novo do Leodoro Gusmão.
Entre os dois vizinhos havia uma amizade mútua, e até uns diziam em boca de cumbuca, que seu Galdino gostava muito de fazer visitas a dona Gertrudes só quando ele não estava em casa. Pois àquela visita era devido um antigo e duradouro relacionamento amoroso que ele mantinha com a Gertrude, a esposa do Leodoro.
Outros afirmavam que não. Dona Gertrude era uma senhora honrada, e jamais deixaria o seu nome cair em patotas de devoradores de honras, ou mesmo em reuniões de vizinhos nas calçadas. Mas como ninguém tinha certeza das conversas que circulavam na redondeza sobre o engodo amoroso do casal, apenas conversavam entre os dentes outras infidelidades da Gertrude.
Há dias que o Leodoro não aparecia na residência do seu Galdino, pois em companhia da Gertrude havia se ausentado do lugar, e juntos, abalaram-se às terras cearenses, para fazerem visitas a uma filha que morava em Juazeiro do Norte. Um passeio formidável e merecido, para matarem as saudades; pois já fazia cinco anos que pais e filha não se viam de perto.
Como o retorno do casal iria demorar Leodoro deixara a propriedade sobre os cuidados do compadre seu Galdino, e este sendo zeloso, cuidava dos afazeres rotineiros.
Um mês depois Leodoro retornou à velha morada, pois afirmara que já estava com saudade das belas histórias de onças, todas contadas por seu Galdino.
Nessa noite o Leodoro chegou à boquinha da noite à casa do seu Galdino.
- Abanque-se compadre, abanque-se. – Ordenou-lhe seu Galdino.
- Sim senhor! – Fez o Leodoro se sentando num velho banco de tábua de aroeira, plainado pelo carpinteiro Dodoca.
- E o passeio compadre, foi bom? – Quis saber o seu Galdino.
- Muito bom, compadre! Muito bom! Conheci alguns lugares daquela terra cearense. No Juazeiro vi de perto a estátua do meu Padim Pade Ciço, como o chamava o bandoleiro Lampião. Isso é uma imensidão de estátua com vinte e sete metros de altura, compadre. O senhor se cansa só em olhar para cima. Depois de Juazeiro conheci o Crato (terra do amigo Manoel Severo, editor do blog Cariri Cangaço), que me deixou abismado com as suas belezas. O dia seguinte, me levaram até Barbalha, e quanto mais meu olhar via as belezas de lá, mais ele queria ver coisas fantásticas. Além dessas que eu já citei compadre, fiz visita às pressas à Missão Velha, e outras e outras cidades da região cariri. Fui bem recebido por todos de lá. Por onde eu passei compadre, só conheci gente hospitaleira e decente, e ponha decência nisso como é o povo do Ceará.
- Compadre, e Canindé o senhor o conheceu. – Perguntou-lhe seu Galdino.
- Não compadre! A nossa viagem estava programada para Juazeiro e não para o Canindé de São Francisco...
- Ah, sim!... E...
Ali sentados sob o telheiro os compadres conversaram muito sobre a maravilhosa visita às cidades cearense feita por Leodoro. E num momento, o Leodoro que já fazia mais de mês que não ouvia histórias de onças contadas por seu Galdino, quis saber sobre as suas caçadas e façanhas.
Seu Galdino como gostava de contar as suas aventuras, sem menos pensar, saiu com uma novinha em folha. Esticou-se um pouco sobre o assento, enquanto fabricava um cigarro de fumo Arapiraca. Em seguida disse-lhe:
- Ultimamente compadre, eu tenho caçado muito pouco. Como o senhor sabe, as minhas cercas estão todas precisando de reparos, e se eu não as reparar, com certeza o milho que está para ser quebrado, as criações dos nossos vizinhos irão devorá-lo..., mas a semana passada – continuava ele - eu passei uma coisa que tenho certeza que ninguém quer para si.
- E o que foi que aconteceu com o senhor, compadre Galdino? – Perguntou-lhe Leodoro em tom de piedade.
- Para que o senhor entenda o que aconteceu comigo eu tenho que lhe contar desde o começo. Na semana passada, bem cedo, eu saí beirando cerca – dizia ele colocando uma mão atrás da outra, fazendo o gesto de caminhar - no intuito de reparar as cercas, isto é, amarrar alguns arames que estavam soltos das estacas. E segui fazendo este trabalho. Eu havia levado aquela espingarda “marca-bombo” que o senhor muito bem a conhece...
- Sim Senhor! – Confirmou o Leodoro.
- Como eu já estava decidido para ir consertar as cercas, a noite anterior eu preparei o meu bornal com chumbos, espoletas, pólvoras e buchas de mororó...
- Sim senhor! – Fez o Leodoro.
- E saí para cumprir a minha missão de reparar as cercas. Bem perto do “Riacho Negro” eu me deparei com um tamanduá enorme. Fiquei pensando. Mato-o ou não o mato o pobre infeliz...
- Que sorte compadre, essa sua de ainda ter encontrado nestas matas um tamanduá.
- Muita! Pois sim..., ele estava montado sobre um galho de um jucá. Quando ele me viu, quis descer. Mas eu com aquela dúvida mato-o ou não o mato, fiquei afiando a foice, no intuito de dar uma única foiçada no miserável. Distraí-me. E quando cuidei, ele já havia descido do galho e foi saindo lentamente, como se fosse fugindo para se esconder de mim. Assim que eu me aproximei dele, eu não tive mais coragem de matá-lo.
- Mas por que compadre Galdino, o senhor não quis mais matá-lo?
- Compadre, o que ele fez diante de mim me deixou penalizado. Ele ficou de pé como se estivesse me pedindo: -Não me mate seu Galdino! Não me mate seu Galdino! Mas o senhor sabe que quem é pobre é assim mesmo.
- É verdade compadre. É verdade. – Confirmou o Leodoro.
- E naquela confusão mato-o ou não o mato, findei me decidindo, e larguei a foice sobre o seu pescoço. Em seguida o coloquei em meu bornal e fui-me embora, isto é, corrigindo as cercas. Lá pelas tantas me veio a fome. Eu já estava no riacho da “Espera do Padre”, e lá, eu fiz rancho embaixo daquele frondoso e viçoso pé de juazeiro, o qual o compadre o conhece muito bem.
- Muito, muito! – Reforçou o Leodoro.
- Quando eu estava colocando a comida no prato, o leite e cuscuz de milho, mais rapadura e duas tapiocas que a Dionísia havia feito para o meu lanche, mais gergelim pisado e coisa e tal..., sabe o que me apareceu de repente em minha frente, compadre?
- Compadre eu não tenho a mínima ideia. – Respondeu-lhe o Leodoro.
- Duas enormes onças!
- Duas enormes onças compadre, naquela mata? – Perguntou-lhe o Leodoro se admirando.
- Sim senhor! E me parece que ambas eram irmãs, porque o tamanho de uma era o mesmo tamanho da outra.
- E o que o senhor fez para se livrar das onças, compadre?
- De início nada. Não tinha o que fazer mesmo. Quando eu as vi, me benzi logo. Dois búfalos daqueles na minha frente, com certeza eu estava frito.
- Espera-me meu compadre, eram duas onças ou dois búfalos?
- Eram duas onças, compadre! Eu disse búfalos, imaginando o tamanho das duas feras famintas. As duas eram pra mais de quarenta arroubas.
- Meu Deus! – Exclamou o Leodoro. Em seguida perguntou-lhe: - Mas compadre, e por que o senhor não atirou logo nessas onças?
- Primeiro que tudo eram duas. Segundo por que eu não tinha mais pólvora, pois ao passar o “Riacho da Espera do Padre”, a água molhou o polvorinho e as espoletas, e com isso fiquei sem condições de atirar em qualquer vivente. E terceiro, se eu ainda tivesse munição, e se eu chegasse a atirar em uma delas, com certeza a outra me devoraria em questão de segundos.
- É verdade, compadre! É verdade! – Reforçou o Leodoro.
- Mas como sempre tem algo que protege a gente – continuou ele - e acredito que é mandado por Deus, eu tive a seguinte ideia:
- E qual foi essa ideia, compadre? – Perguntou o Leodoro querendo adiantar a conversa.
- Lá elas estavam de cócoras olhando para mim. Como eu tinha morto o pobre e infeliz tamanduá, tirei-o do bornal, o abrir, deixando as carnes expostas, e o joguei em direção a uma delas. Eu já tinha imaginado que se eu jogasse o tamanduá para uma, e se a outra me atacasse, eu iria lutar com ela, com a minha foice até vencê-la. E assim fiz. Joguei o tamanduá para uma, e com isso, a outra não querendo ficar sem carne, logo as duas se atracaram. Lá onde elas se atracaram, tem uma ladeira. Elas agarradas, saíram de ladeira abaixo. Como as duas estavam descendo na ladeira, isto é, de cima para baixo, eu pequei o tamanduá e fiz carreira por dentro da mata, correndo, correndo, correndo e até que saí em minha casa. E graças a Deus salvei a minha pobre e estimada vida. E por isso eu estou aqui lhe contando essa história.
- Quer dizer compadre, que o senhor além de ter se livrado das duas onças, ainda recuperou o tamanduá?
- E eu brinco, compadre!? – Fez seu Galdino se gabando.
- Bem pensado, compadre! Bem pensado!...
- Isso é que se chama inteligência, compadre Leodoro! – Dizia seu Galdino batendo a sua mão na cabeça.
- E ponha inteligência nisso, compadre!
Ali, Leodoro se admirava da inteligência do compadre. E minutos depois resolveu ir embora.
- Eu vou embora compadre Galdino, porque já passa da meia noite e pode ser que uma dessas suas onças apareça lá em casa. Gertrude está sozinha e a porta da minha cozinha está muito fraca.., e acredito que se uma dessas onças que o senhor viu se acertar a minha casa, só com o peso das suas patas botará a porta dentro, e irá devorar a pobre Gertrude.
E se levantando do velho bando, Leodoro despediu-se do compadre dizendo:
- Até amanhã, compadre! Até a manhã! – Repetiu ele.
- Até compadre! – Respondeu-lhe seu Galdino dizendo bem baixinho zombando do Leodoro. Deixa que quem vai continuar devorando a Gertrude, sou eu, e não as onças! Fora camaradas onças!
Mas enquanto caminhava, o Leodoro dizia consigo mesmo:
-Mas que lapa de compadre mentiroso eu tenho! Nossa!
Minhas Simples Histórias
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Fonte:
http://jmpminhasimpleshistorias.blogspot.com.br/2013/06/historias-de-oncas.html
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