Notas e
Rabiscos: Raul Meneleu
No tempo de
Lampião, o cearense Leonardo Mota (1891-1948) jornalista e um dos maiores
pesquisadores de causos nordestinos, largou tudo e embrenhou-se sertão adentro
para encontrar-se com aquilo que lhe fascinava; coisas do Nordeste.
Dedicou-se a colher as histórias da boca do povo, registrando-as para a
posteridade. Como em todos os livros sobre Lampião, encontro discrepâncias
entre os autores, não afirmo e nem "desafirmo" o que encontrei em
minhas leituras.
Em “Nos tempos
de Lampião”, (foto: possuo a segunda edição de 1967) existe um capítulo
dedicado a um príncipe. Quem seria esse para estar em uma narração que Leonardo
Mota escreveu, em um livro de histórias sobre o mais famoso cangaceiro que
percorreu os sertões nordestinos? Vejamos então esse capítulo:
O príncipe
AMULATADO e de
estatura meã; magro e semi-corcunda; barba e nuca ordinariamente raspada;
cabelos compridos e, sempre que é possível, perfumados; na perna esquerda,
encravada, uma bala, com que o alvejou o sargento Quelé, da polícia, paraibana;
o olho direito, branco e cego, escondido pelos óculos pardacentos, de aros
dourados; mãos compridas, que semelham garras; os dedos cheios de anéis de
brilhantes, falsos e verdadeiros; ao pescoço, vasto e vistoso lenço de cores
berrantes, preso no alto por valioso anel de Doutor em Direito; sobre o peito,
medalhas do Padre Cícero, escapulários e saquinhos de rezas fortes; chapéu de
cangaceiro, tipicamente adornado de correias e metal branco; ensimesmado toda
vez que defronta uma turba de curiosos, folgazão quando entre poucos estranhos
ou no meio de seus comparsas; não se esquecendo dum guarda-costa vigilante, à
direita, sempre que desconhecidos o rodeiam; paletó e camisa de riscado claro,
calças de brim escuro; alpercatas reluzentes de ilhoses amarelos; a tiracolo,
dois pesados embornais de balas e bugigangas, protegidos por uma coberta e xale
finos; tórax guarnecido por três cartucheiras bem providas; ágil como um
felino, mas aparentando constante estropiamento e exaustão; às mãos o fuzil e à
cinta duas pistolas “Parabelum” e um punhal de setenta e oito centímetros de
lâmina: eis Virgolino Ferreira da Silva – LAMPIÃO – duende das estradas,
assombração das matas e caatingas!
Muita
inverdade se tem escrito a respeito de Lampião. Já o impingiram até por
“almofadinha”, a fazer questão de se mostrar de meias de seda, como se
alpercatas de rabicho e meias finas não fossem coisas que hurlent de se trouver
ensemble… Tais retratos estrambóticos correm mundo, mercê da facilidade de
escritores e jornalistas em aceitarem, sem exame, esquipáticas informações.
O Sr. Gustavo
Barroso, à pagina 94 do seu “Almas de Lama e de Aço”, sustenta que o pai de
Lampião foi morto “pela polícia pernambucana”. Não é exato. O velho José
Ferreira tombou, sem vida, quando uma volante alagoana encontrou resistência ao
lhe cercar a casa, à procura de Virgolino e seus manos, que já eram criminosos.
Por sinal que a referida força era comandada pelo então Alferes José Lucena e a
esse tempo Lampião deixara de ser tropeiro do Cel. Delmiro Gouveia.
O Sr. Vergne
de Abreu, à pág. 10 do livro “Os Dramas Dolorosos do Nordeste” chama a
Virgolino de “covardíssimo cearense”. Não é verdade. Lampião não deixou o
umbigo no Ceará, mas em Pernambuco. Aconteceu tal “desgraça” aos 12 de
fevereiro de 1900. Já o disse em versos o poeta popular José Cordeiro:
No centro de
Pernambuco,
No Nordeste
Brasileiro,
No ano de
novecentos,
A 12 de
Fevereiro,
No termo de
Vila Bela
Nasceu esse
cangaceiro.
Virgolino
tinha quatro irmãos: dos três que com ele se acumpliciaram, resta somente
Ezequiel. Antônio Ferreira morreu de sucesso, digo, vitimou-o um acidente.
Livino… este tem a caveira espetada numa estaca, entre Tacaratu e Jericató, no
sertão de Pernambuco. João, débil mental, jamais acompanhou a irmandade
delinquente.
Uma das
maiores ojerizas de Virgolino é contra as sertanejas que, influenciadas pela
moda, cortam o cabelo à la garçonne: estas são infelicitadas, não por ele que
as detesta, mas a mando seu, pelos cabras que o acompanham. Os sacerdotes que
pregam contra a depilação das mulheres não se esquecem de lembrar às fiéis que
a devastação das tranças, afora as penas do inferno, pode importar os rigores
da punição terrena de Virgolino.
Singular é que
o bandido, abominando a moda feminina, não tenha, por seu turno, o tradicional
respeito sertanejo pela barba e procure viver de rosto glabro, sem o precário
ornamento capilar dos fios do ralo bigode.
Na minha
última visita à Penitenciária de Recife, perguntei a Antônio Silvino, a onça
ali enjaulada, desde novembro de 1914:
- Silvino, que
é que você me diz de Lampião?
- Ah, seu Dr.
Lampião é um Prinspe!
- Príncipe por
quê?
- Veio depois
de mim. Os tempos são outros. As arma estão mais aperfeiçoada. Não falta quem
lhe dê tudo. Caixeiro viajante não é besta pra se esquecer de levar presente de
bala pra ele. A poliça quer é só se encher de dinheiro no sertão. O mundo todo
virou revoltoso. Os Governo deixam de mão os cangaceiros porque não tem tempo
nem de cuidar dos revoltoso. Não tenha dúvida: Lampião é um Prinspe!
- Mas,
Silvino, Lampião está praticando horrores no sertão. Você, não! Você era um
cangaceiro simpático, que respeitava as famílias e defendia os pobres. Diga-me
uma coisa: homem que tem experiência das lutas, você não vê um meio de a
humanidade se ver livre de Virgolino?
Lisonjeado, o
velho cangaceiro passou a mão pelo cabelo aparado rente ao crânio e insinuou, sorridente:
- Home, só se
a gente fizesse com ele o que fizeram com o Pitiguá…
Não atinei
prontamente com o sentido da resposta, mas quando depois Silvino aduzia que
bomba de dinamite não faz graça pra ninguém se rir, compreendi que ele lembrava
o atentado contra o General Potiguara e sugeria o recurso duma bomba
traiçoeira, disfarçadamente enviada ao Prinspe…
Nessa minha
visita à Casa de Correção da capital pernambucana, conversei à vontade com
vários comparsas de Lampião, já felizmente caídos nas malhas da Justiça. Entre
eles, os que mais davam à língua eram Serra Umã, Braúna, Pássaro Preto, Zabelê,
Cancão e Guará.
Braúna aludiu
à religiosidade de Lampião. Alma atufada de crendices, pescoço a vergar sob o
peso de patuás, Virgolino tem como sua mais eficiente mandinga a oração do
meio-dia. Se a cavalo perlustra erma estrada, quando o seu relógio marca as
doze horas, ele se apeia e, genuflexo na areia quente do caminho, curva a
cabeça a comunicar-se com as forças misteriosas do Além. Mesmo no mais renhido
tiroteio, abandona o fuzil e suplica a não sei que santos ou diabos lhe
continuem a conservar o corpo fechado.
A uma
indagação minha sobre se Lampião é corajoso, Zabelê atendeu:
- É, e tem uma
coisa: pra prender ele inda não nasceu home. Pode nascer ou já nasceu pra
juntar os pedaços dele, porque ele se esbagaça, mas não vai preso. Virgolino é
home pra se acabar nas mãos doutro home, a qualquer hora do dia ou da noite. O
cabra que cair na besteira de se botar a ele segure o pulo porque, se errar o salto,
ele o lambisca depressinha, tão certo como dois e dois ser quatro. Tem uma
coisa: brigar a toa, pra perder ou só pra esperdiçar munição, ele não briga…
Guará
ponderou, numa comparação de discípulo aprendido:
- Espie só se
os revoltoso andavam brigando a torto e a direito! A gente neste mundo só
vadeia quando pode…
Serra Umã, com
ar respeitoso, aparteou com uma informação preciosa:
- O único home
que, se Lampião botar-lhe os olhos em riba, vai a ele, nem que saiba que os
dois se desgraçam, é o capitão Zé Lucena, da polícia de Alagoas. Esse oficial
era quem comandava a força que matou o pai dele, Virgolino. Lampião, quando
fala nele, bate os queixo de raiva que nem caititu acuado, ou que nem paroara
com sezão…
Pássaro Preto
procurou fazer a apologia do chefe:
- Dizem que
Lampião só tem é perversidade, mas ele, às vez, inté mostra que tem bom
coração…
E com um
exemplo ilustrou o que dizia:
- Logo que um
garrancho de jurema fez aquele estrago no olho direito dele, ele um dia topou
na estrada com um rapaz que disse que era médico. Era um doutorzim que acabava
de chegar dos estudos no Rio, e vinha ganhar a vida aqui, no sertão de Pernambuco.
Mais ele vinha um cabra frouxo, que andava de rife no cabeçote da cangalha, mas
na “hora do pega pra capar”, não fez a menor ação. Ficou foi amarelo que nem
uma fulô de algodão. Quando o moço falou quem era, Lampião disse, satisfeito:
Com um Doutô mesmo é que eu andava com vontade de me encontrar”. O moço cuidou
que Lampião estava dizendo que queria ter o gosto de matar um home formado e
pediu por tudo quanto era sagrado que não lhe fizesse mal, pois não tinha mais
pai e era quem sustentava uma mãe velha com um bocado de irmãos. Lampião
sossegou ele:
- “Não tenha
susto, o Doutô está garantido! Agora o que vai lhe acontecer é que o Sr. vai se
despedir do mundo durante uma semana. Eu preciso que o Sr. vigie se dá um jeito
neste meu olho encrencado. Pra isso nós vamos passar uns dias naquele saco de
serra, onde eu conheço umas furna que é direito uma casa”.
O médico foi
e, como na carga trazia umas meizinhas de primeira necessidade, pôde tratar de
Lampião. Ao cabo de cinco dias, Virgolino estava muito melhor da infuleimação
reimosa e resolveu ir botar de novo o Doutô na estrada real. No momento de se
despedirem, Lampião deu a ele quatro contos de réis e, adispois de especular
onde é que ele ia ganhar a vida, prometeu:
- Vá, seu
Doutô, pode ir sem susto que eu lhe garanto que tão cedo eu não consinto outro
Doutô tomar chegada no seu negóço. O Sr. fica sozinho no lugar, que é pra assim
poder ganhar mais dinheiro…
Como de fato.
Passou-se foi tempo com tudo quanto era de médico medroso de andar por aquela
zona. O doutorzim se encheu de dinheiro!
Fiz a todos a
pergunta:
- Vocês não se
lembram dalgum caso engraçado de matuto medroso, ao se ver às voltas com
Virgolino?
Serra Umã foi
o primeiro a manifestar-se:
- Uma vez,
junto de Vila Bela, aqui em Pernambuco, Lampião chegou mais nós numa venda e
mandou arrear uma dessas garrafas de litro de conhaque. Lampião, com cisma de
veneno, fez o bodegueiro beber, na frente, coisa duns dois dedo e, depois,
bebeu assim um meio copo. Estava-se nisso, quando um sujeito que nós não
conhecia pediu a Lampião um golpinho da bebida. Lampião espiou pra ele de cara
fechada e disse por aqui assim: – “Pra você nunca mais tomar confiança com
homem que não é seu pariceiro, eu hoje lhe mato a vontade! “E obrigou o
camarada pidão a beber todo o resto do conhaque! Ou bebia, ou levava faca! O
cabra saiu que saiu às queda e foi lançar, foi vomitar, agarrado nas estaca dum
cercado…
Riram os
bandidos, como se o caso recordado fosse jocoso e não atestasse, acima de tudo,
a perversidade de Virgolino. Mas para aquelas almas, embotadas pela torpeza de
delitos inenarráveis, a brutalidade do gesto infame se afigurava de
irresistível comicidade.
Zabelê
cochichou qualquer coisa aos ouvidos de Cancão e este, num riso de monstro, a
mostrar a fileira de dentes pontiagudos, cerrados como caninos, desembuchou,
desembaraçado, aquilo que Zabelê se acanhava de referir:
- A coisa mais
engraçada que eu tive de assistir passou-se numa fazenda do município de
Princesa, na Paraíba. O velho dono da casa tremia que era ver vara verde.
Lampião o botou debaixo de confissão, riscando-lhe o punhal nas costelas e ele
acabou descobrindo o rumo da volante do Tenente Mané Binisso. Virgolino queria
dar no velho uma surra de relho, mas, era tanto choro de muié e menino, que o
jeito foi se perdoar. Mais com pouca, Lampião tirou do bolso um maço de
cigarros e ofereceu:
- Pita?
O velho ficou
calado, fez que não tivesse ouvido. Lampião tornou a perguntar, desta vez
gritando no pé do ouvido dele:
- Pita?
Aí, todo
tremendo, o velho disse:
- Pito. Mas,
Vamincê querendo, eu largo o viço…
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