Por Rangel Alves da Costa*
Já se vão quase seis anos que não tomo uma talagada boa de casca de pau. Nem aguardente matuta nem qualquer outra bebida que passarinho não beba. Mas quando me oferecem uma dose ou um copo gelado logo respondo que ainda não, mas quando chegar o tempo certo tudo será dispensado em nome da casca de pau. Não beberei outra coisa senão aguardente misturada à raiz, folha ou casca de angico, umburana, quixabeira, hortelã, quebra-pedra, barbatimão, cidreira, e por aí vai. E digo mais: além de ser cachaça da boa é também incomparável remédio.
Para uma noção da farmácia existente após cada pé de balcão, dores, luxações e disfunções orgânicas, além de uma série de enfermidades, são curadas com a dose certa da cachaça certa. O vendeirim prescreve até duas doses, avisando ainda que encher a cara imaginando cura rápida terá efeito contrário. Além de bêbado, o sujeito certamente terá de amargar o sofrimento de uma doença não curada e de uma ressaca que parece sem cura. Por isso mesmo é preciso muito cuidado ao chegar num pé de balcão pensando que é farmácia.
A casca de pau, assim comumente chamada entre os apreciadores, além de aperitivo costumeiro ou como remédio, é consumida pelos mais diversos motivos e justificativas. É bebida para esquentar, para animar, para chamar o apetite, para garantir a barriga após a ingestão de alimentos gordurosos ou pesados. Só desavisado come carne de porco sem antes virar uma relepada. Antes e depois de uma buchada será preciso se garantir com uma boa dose. Segundo um vendeirim conhecido, mágoa de paixão só é curada na cachaça com raspa de canela. Já para dor de corno só mesmo misturando a cachaça sem o traído saber. Não demora muito e já estará mansinho e conformado.
Segundo os donos de botequim e velhos afeitos à beberança, a cachaça com a casca de umburana serve para curar inflamações, dores nas juntas, reumatismos e problemas do pulmão. A pinga com casca de angico é curativa em casos de diarreias, de doenças das partes de baixo, de gripes e resfriados, como cicatrizante nas contusões e cortes. Contudo, alertam que o exagero no angico pode fazer com que os olhos avermelhem de tal modo que parecem sangrar. Já a aguardente com quebra-pedra é utilizada para combater doenças nos rins, daí o seu nome.
A cidreira é um santo remédio, dizem os conhecedores da bebida. Afasta o nervosismo, cura problemas de digestão, é anestésico e analgésico, cura meio mundo de enfermidades. Outra unanimidade é a barbatimão. Conheço muito gente que bebe a infusão para qualquer problema que se relacione a dor, machucado ou contusão. A listagem é imensa, com cada raiz, folha, casca ou pó, tendo uma destinação específica, ou várias delas com a mesma serventia. Mas tem gente que prefere a cachaça sem mistura, mas desde que seja legítima e de engenho. Ainda assim diz que cura os males da tristeza e do amor não correspondido.
Nanô, um dos mais antigos donos de botequim do sertão sergipano, certa feita me relatou acerca da correta preparação da cachaça com raiz de pau. Ele mesmo, ainda que já tenha passado dos oitenta, vai de facão à mão em busca da folha, da casca ou da raiz. Ao retornar, deixa tudo secar e somente dias depois é que vai colocando a porção certa em cada garrafa. Não é preciso colocar nova porção quando a cachaça acaba, somente quando a coloração vai revelando a perda da essência. Ainda assim, a garrafa ficará maturando toda vez que é novamente cheia de aguardente. Somente quando toma cor é que começa a ser servida.
Conheci muitos donos de botequins e biroscas especializadas em casca de pau. Também conheci e ainda preservo amizade com muitos apreciadores da autêntica cachaça matuta. Todos afirmam que é no preparo que está o segredo da boa pinga. E também no modo de servir. O maior mal é misturar água na cachaça, pois não só tira sua qualidade como provoca inchaços no bebedor. Também não é qualquer quixabeira ou angico que sirva à misturação. A planta não pode ser nem velha nem nova demais, e sem esquecer a quantidade certa em cada garrafa. Casca demais faz com que a cachaça perca o sabor e comece a amargar.
Também não é em qualquer copo que se deve beber a pinga sertaneja. Muita gente se nega a ser servido em copo comum, exigindo aquele copinho miúdo, de fundo grosso, com feição desgastada pelo uso. O balcão também é de relevo na beberança. Casca de pau só é boa quando pedida e bebida no pé de balcão, e com um santo beberrão abaixo para o pingo certo ser derramado. E se na ponta do balcão houver um umbu verdoso, então a segunda dose já estará assegurada. Não se deve cuspir depois de virar a dose. Ora, quem cospe joga fora toda a magia da bebida.
Noutros tempos, quando os velhos vaqueiros se reuniam ao pé do balcão para as doses do dia, verdadeiro encanto era ouvir suas histórias, seus causos, suas conversas sobre bichos, secas, boiadas e currais. E mais ainda se, junto a eles, brindasse à vida sertaneja na casca de pau. E logo surgia o aboio, a toada, o canto de um povo no seu remanso.
Poeta e cronista
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