9 de jan. de 2016

O ataque de Lampião a Uiraúna: uma vitória da inteligência sobre a força


Há meses Lampião sumira dos noticiários dos jornais. O ano de 1926 encerra-se sem grandes novidades sobre a horda do famoso cangaceiro de Vila Bela. Bem instalado e seguro no ‘coito’ da Serra do Diamante, do poderoso Coronel Isaías Arruda, Lampião sai da aparente inatividade apenas em fins de abril de 1927. Naquele fim de mês, o bandoleiro deixa o refúgio e pratica assaltos em pequenos vilarejos situados na região noroeste da Paraíba, entre os municípios de Cajazeiras e São José de Piranhas. São ataques rápidos, com vistas apenas ao saque. A proximidade desta parte da Paraíba com o valhacouto do ‘dono’ de Missão Velha facilita sobremaneira a ação do bando.

De fato, no dia 15 de maio daquele ano, liderando uma falange de cerca de trinta e cinco homens, Lampião se prepara para tomar de assalto a Vila de Belém do Arrojado – atual cidade paraibana de Uiraúna. Há dias que ‘olheiros’ residentes em sítios da fronteira já haviam sondado o vilarejo e o cangaceiro – decerto bem ciente das condições do lugar – crê que tem plena chance de sucesso na empreitada que pretende levar avante.

o Arruado de Belém situa-se junto à fronteira do Rio Grande do Norte e é então inexpressivo. Ali não há mais que cento e trinta casas e uma igreja singela. Comércio pobre ou quase inexistente. Também ali não está destacado sequer um contingente policial para manutenção da ordem ou para oferecimento de uma defesa – mesmo que acanhada – no caso de um eventual ataque de cangaceiros. A ‘ordem’ no povoado é garantida somente por um Subdelegado civil, o potiguar Nelson Leite. Apesar de reiteradas notícias sobre incursões de cangaceiros naquela parte da Paraíba nos últimos dias, o Governo do Estado parece ignorar os eventos propalados pelos jornais e pela boca do povo. Apesar de vários reclamos por parte de proeminentes de Belém, o Estado não enviara tropa regular para a localidade.

O início da tarde daquele dia 15 de maio, no entanto, o sertanejo Leonardo Pinheiro percebe a marcha de cangaceiros em direção a Belém. Sem demora, espora o cavalo e entra no povoado em sonoro alarde:

-“Vem cangaceiro por aí! Vem cangaceiro por aí! Parece que é Lampião e não está a mais que umas duas léguas!”

Enquanto a horda marcha em busca do vilarejo, Nelson Leite se apressa em organizar uma defesa. Sangue quente, cioso de suas obrigações, Leite parece disposto a sacrificar a própria vida na defesa da comunidade que lhe fora confiada.

Abandonados à própria sorte, os habitantes de Belém – incentivados por Nelson Leite – tratam de se armar e garantir a resistência do lugar. Civis são convocados e há mesmo os que comparecem voluntariamente para pegar em armas. Ao final do rápido recrutamento, chega-se à desanimadora soma de onze homens apenas. Um contingente ínfimo que tentará rechaçar um bando com cerca de trinta e cinco cangaceiros. Uma luta desigual – se considerarmos a proporção de três bandoleiros para cada defensor e a falta de experiência de guerrilha dos citadinos. Por volta das dezessete horas, finalmente, Lampião avizinha-se da Vila. O frágil agrupamento de casas lhe parece excessivamente frágil e torna-se ainda mais amiudado pela sombra da serra de Luís Gomes, não muito distante dali. “Um alvo fácil”, provavelmente terá pensado o poderoso cangaceiro. O desenrolar dos fatos, porém, lhe revelará um grave erro de prognóstico.

Em que pese a correria desenfreada que se seguiu ao alarma dado por Leonardo Pinheiro, os homens de Nelson Leite aprestam munição e armas. Tudo é feito com rapidez e disciplina. Ao mesmo tempo, mulheres, velhos e crianças – a seguir igualmente os apelos do Subdelegado – buscam refúgio na caatinga ou em sítios de familiares fincados nos arredores de Belém. Pequenos “tesouros” são previamente enterrados em lugares seguros. Potes de barro, caixas de papelão, latas de querosene: qualquer coisa serve como invólucro para as ‘economias’ adquiridas ao longo de anos de trabalho.

Em pouco tempo, os defensores se organizam e estão posicionados em lugares previamente definidos pelo Subdelegado. Dedos nervosos aguardam o desfecho do ataque. Uma testemunha registra os momentos iniciais do entrave:

“O ‘delegado’ Nelson Leite distribuiu uns homens nos pontos mais altos da rua principal, dois outros guarnecendo as laterais e três instalados no teto da Igreja. Quando Lampião entrou com o bando, pela ‘rua velha’, começou a fuzilaria”. (Sinforosa Claudina de Galiza, entrevista).

Nelson Leite, de fato, engendrara bom plano. Distribuíra os poucos rifles e fuzis disponíveis com os onze defensores. Repartiu com irrepreensível parcimônia a rala munição que tinha ao seu dispor. Os melhores atiradores foram destacados para pontos estratégicos. No teto da igreja – prédio mais alto e com abrangente visão dos arredores – posicionaram-se Luís Rodrigues, Moisés Lauriano, José Teotônio e Joaquim Estevão. O tempo corre lento. Não há novidades. Até perto das oito horas nem sinal da sinistra patuléia de chapéu de couro. A espera alongada transforma as trincheiras em ninhos de ansiedade.

De súbito, Luís Rodrigues dá o alarma. Alguém se aproxima. O luar denuncia vultos sorrateiros. Homens armados aproximam-se do povoado pela ‘rua da Proa’. É o início da invasão. De pronto, grande incêndio ilumina a noite na pequena Belém. Grossas labaredas passam a consumir a casa de um agricultor e espalham-se rapidamente para um antigo curral e plantação de milho já há dias quebrado. O incêndio. Método infalível para incutir terror aos sitiados.

Josefa Augusta Fernandes, bem jovem à época do evento, anota a origem do fogaréu:

“Lampião começou destruindo a propriedade do finado João Gabriel, tendo em seguida tocado fogo nos currais e nas plantações de feijão e milho. O fogo serviu para alertar os homens da cidade, sendo que eles já estavam em posição nos principais pontos daqui”. (Maria do Socorro Fernandes, entrevista).

Não havia mais o que esperar. Ao primeiro grito de comando de Nelson Leite, trava-se pesado tiroteio. Lampião, decerto, não esperava semelhante reação. A fantástica fuzilaria oriunda da Vila lhe faz recuar. De efeito, os tiros vindos da rua da Proa tornam inviável uma entrada por aqueles lados.

Sem sucesso na primeira investida, o chefe de cangaço tenta confundir os defensores entrincheirados. Sob sua batuta, os bandoleiros passam a gritar, urrar como animais e a praguejar insultos e xingamentos aos defensores e suas famílias. A permear a gritaria, grossas baterias de tiros.
O rei-do-cangaço deseja tomar Belém. Tentará de todas as maneiras penetrar no vilarejo para vilipendiar suas casas e lhes extrair até o último ‘cobre’. Sem demora, ordena aos comandados a ‘abertura’ de uma linha de fogo pela lateral, com o fito de invadir a Vila pelo flanco oposto.

Nada, entretanto, parece gerar resultado prático. A posição privilegiada dos atiradores locados no telhado da igreja permite que tiros sejam disparados em todas as direções. A resistência agiganta-se com estrondos de repercussão fantástica e de curiosa origem. Nelson Leite improvisara – no pouco tempo que dispôs antes da consecução do ataque – algumas “ronqueiras” e logo começou a fazer uso dos artefatos. Os estrondos causados pelas bombas caseiras são assustadores e surpreendentemente surtem efeito. Um simples improviso que, ao que tudo faz crer, parece realmente ser a chave para uma vitória. (1)

Em pouco, qualquer objeto metálico em formato cilíndrico – e vazado pelo menos em um dos lados – torna-se invólucro para manufatura dos pesados rojões. Joel Vieira, com dezoito anos à época do fato, registrou em depoimento:

“Os que estavam no alto da Igreja, começaram a atirar de ponto e também para dentro da igreja, causando um eco que parecia canhão. O Subdelegado também tinha improvisado umas ‘ronqueiras’, feitas com pólvora socada dentro de latas, e de quando em quando estourava uma. Já estava escuro, e aqueles tiros davam a impressão que havia um canhão com a gente”.

No alto da igreja, Luis Rodrigues – artilheiro mais aguerrido – resolve acrescentar estrondos adicionais aos estampidos das ‘ronqueiras’ improvisadas pelo Subdelegado. Dessa forma, com o intuito de causar impacto ainda maior, começa a atirar quase em paralelo à lateral da nave do prédio sagrado. Estrondos fantásticos, causados pelo eco do salão quase vazio, dão ainda mais ânimo aos outros defensores entrincheirados no teto da igreja. Decide-se que alguns deles, alternadamente, passarão a atirar também para dentro da nave.

A estratégia funciona. Os estrondos se multiplicam. De fato, para quem está do lado de fora, resta a impressão de que algum tipo de canhão está sendo utilizado. Os cangaceiros, atarantados, mantém posição de cautela e não avançam. O escuro da noite enevoada pela fumaça dos disparos os impedem de enxergar, na verdade, o tipo de “arma” adicional que ora se usa na defesa do arruado. O engodo paulatinamente funciona.

No calor da peleja, porém, passos apressados denunciam silhueta humana esgueirando-se próximo à igreja. A escuridão da noite não permite distingui-la com precisão. Da torre principal um defensor atira. O civil Antônio Correia é atingido. Confundiram-no com um cangaceiro. Correia morre pouco tempo depois em razão do profundo ferimento à altura do pulmão. É a única baixa durante o combate.

Os cangaceiros não desistem e tornam a investir contra o território inimigo por uma ruela lateral à igreja. Lampião brada ordens aos seus homens. Todos, contudo, parecem hesitar em razão dos estrondos que continuam a reverberar entre as casas da pequena Belém.

Do lado dos defensores, um voluntário prontifica-se para preparar novas ronqueiras, de forma ininterrupta, servindo-se como espécie de municiador.

Dominado pela ira, Lampião manda reacender o fogo que arde tênue na propriedade de João Gabriel. O vento rapidamente espalha as labaredas em espantosa velocidade. As chamas consomem vacas e bezerros cativos no cercado contíguo a casa. Urros de dor de animais engolidos pelas chamas desenham dantesco suplício. Poucos escapam ao bizarro holocausto.

A derradeira tentativa de conquista do povoado fracassa. Com pesar, os cangaceiros reconhecem que não conseguirão penetrar em Belém.

O desconhecimento dos pontos de defesa, o espocar das “ronqueiras”, o ribombar de tiros reverberados pelo salão da igreja, a configuração física da vila, o cansaço da longa marcha até ali. Tudo parece sugerir uma retirada. Lampião não demora em perceber o malogro da empreitada:

– Vamos sair para economizar munição! – grita furioso.

Ainda se ouvem tiros por mais um quarto de hora. Aos poucos os cangaceiros se retiram do campo de luta. Disparos tornam-se esparsos. Ao compasso da retirada, a fuzilaria regride até reinar o mais absoluto silêncio. Lampião e seus homens deixam Belém em definitivo. É ainda Joel Vieira quem destaca:

“Eles tentaram muito, mas não conseguiram entrar. Antes das sete horas da noite, já tinham ido embora. No dia seguinte, o festejo foi grande, pois todos pensavam que ia morrer muita gente, mas não. Apenas um rapaz morreu vítima de uma ‘bala doida’ e caiu ali perto da Igreja. Tirando o incêndio na propriedade de João Gabriel, o prejuízo aqui foi pouco. Com pouco recurso, a gente botou Lampião prá correr!”.

E Lampião, de fato, jamais voltou a Uiraúna. Nos dias seguintes, um telegrama é enviado para as principais cidades do sertão do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Anunciava-se a vitória de um povo contra o poderoso rei do cangaço. O Intendente local assinou o comunicado:

“Fomos atacados dia 15 famigerado Lampião. Resistimos cerrado fogo, bandoleiros recuaram. Vítima tiroteio Antônio”. (a) José Caboclo.

É a vitória inconteste de um sumário grupo de cidadãos contra quase quarenta cangaceiros. Uma vitória nascida da confiança de homens do povo; sertanejos comuns. Não houve – como aconteceu em Mossoró – um grande lapso de tempo para a preparação de uma defesa. Não houve reuniões; não se teve tempo para comprar armas modernas. Não havia sequer uma torre na igrejinha da cidade. Existia, apenas, a vontade de preservar os próprios lares.

Uiraúna se defendeu heroicamente, a exemplo da resistência mostrada pela pequena Nazaré, em Pernambuco, quatro anos antes. Uiraúna impediu a entrada dos cangaceiros de Lampião como faria a população sergipana de Capela, liderada pelo destemido Mano Rocha, três anos mais tarde.
A vitória do povo de Uiraúna foi obtida sem recursos, sem alarde e sem exploração midiática posterior. Vitória conseguida sem um ‘notável planejamento prévio’ e sem colóquios barulhentos. Vitória de um pequeno grupo de homens pegos de surpresa pelo maioral do cangaço. Vitória, porém, recheada de atos do mais real e verdadeiro heroísmo. Vitória, enfim, da inteligência sobre a força.

Sérgio Dantas
Sérgio Augusto S. Dantas é autor dos livros “Lampião no Rio Grande do Norte – A História da Grande Jornada” (2005), “Antônio Silvino – O Cangaceiro, o Homem, o Mito” (2006) e “Lampião: Entre a Espada e a Lei” (2008).
NOTA:
(1) s.f. – Ronqueira: “Cano de ferro, preso a uma tora de madeira e cheio de pólvora, o qual produz grande detonação quando se lhe inflama a escorva”. (Aurélio). As ronqueiras já haviam sido largamente usadas em revoltas populares, como na guerra de Canudos. N do A.
FONTES UTILIZADAS:
A União, edições de 17 e 18 de maio de 1927.
DANTAS, Sérgio Augusto de Souza. LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE – A HISTÓRIA DA GRANDE JORNADA. Editora Cartgraf, Natal/RN. 2005. 452 pgs.
SOUZA, Tânia Maria de. UIRAÚNA NO ROTEIRO DE LAMPIÃO, in Revista Polígono, 1997, 158 pgs.

Entrevistas concedidas ao autor por Maria do Socorro Fernandes (2003), Joel Vieira da Silva (2001), Josefa Augusta Fernandes (2000) e Sinforoza Claudina de Galiza (2000).

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