Há meses
Lampião sumira dos noticiários dos jornais. O ano de 1926 encerra-se sem
grandes novidades sobre a horda do famoso cangaceiro de Vila Bela. Bem
instalado e seguro no ‘coito’ da Serra do Diamante, do poderoso Coronel Isaías
Arruda, Lampião sai da aparente inatividade apenas em fins de abril de 1927.
Naquele fim de mês, o bandoleiro deixa o refúgio e pratica assaltos em pequenos
vilarejos situados na região noroeste da Paraíba, entre os municípios de
Cajazeiras e São José de Piranhas. São ataques rápidos, com vistas apenas ao
saque. A proximidade desta parte da Paraíba com o valhacouto do ‘dono’ de
Missão Velha facilita sobremaneira a ação do bando.
De fato, no
dia 15 de maio daquele ano, liderando uma falange de cerca de trinta e cinco
homens, Lampião se prepara para tomar de assalto a Vila de Belém do Arrojado –
atual cidade paraibana de Uiraúna. Há dias que ‘olheiros’ residentes em sítios
da fronteira já haviam sondado o vilarejo e o cangaceiro – decerto bem ciente
das condições do lugar – crê que tem plena chance de sucesso na empreitada que
pretende levar avante.
o Arruado de
Belém situa-se junto à fronteira do Rio Grande do Norte e é então inexpressivo.
Ali não há mais que cento e trinta casas e uma igreja singela. Comércio pobre
ou quase inexistente. Também ali não está destacado sequer um contingente
policial para manutenção da ordem ou para oferecimento de uma defesa – mesmo
que acanhada – no caso de um eventual ataque de cangaceiros. A ‘ordem’ no
povoado é garantida somente por um Subdelegado civil, o potiguar Nelson Leite.
Apesar de reiteradas notícias sobre incursões de cangaceiros naquela parte da
Paraíba nos últimos dias, o Governo do Estado parece ignorar os eventos
propalados pelos jornais e pela boca do povo. Apesar de vários reclamos por
parte de proeminentes de Belém, o Estado não enviara tropa regular para a
localidade.
O início da
tarde daquele dia 15 de maio, no entanto, o sertanejo Leonardo Pinheiro percebe
a marcha de cangaceiros em direção a Belém. Sem demora, espora o cavalo e entra
no povoado em sonoro alarde:
-“Vem
cangaceiro por aí! Vem cangaceiro por aí! Parece que é Lampião e não está a
mais que umas duas léguas!”
Enquanto a
horda marcha em busca do vilarejo, Nelson Leite se apressa em organizar uma
defesa. Sangue quente, cioso de suas obrigações, Leite parece disposto a
sacrificar a própria vida na defesa da comunidade que lhe fora confiada.
Abandonados à
própria sorte, os habitantes de Belém – incentivados por Nelson Leite – tratam
de se armar e garantir a resistência do lugar. Civis são convocados e há mesmo
os que comparecem voluntariamente para pegar em armas. Ao final do rápido
recrutamento, chega-se à desanimadora soma de onze homens apenas. Um
contingente ínfimo que tentará rechaçar um bando com cerca de trinta e cinco
cangaceiros. Uma luta desigual – se considerarmos a proporção de três
bandoleiros para cada defensor e a falta de experiência de guerrilha dos
citadinos. Por volta das dezessete horas, finalmente, Lampião avizinha-se da
Vila. O frágil agrupamento de casas lhe parece excessivamente frágil e torna-se
ainda mais amiudado pela sombra da serra de Luís Gomes, não muito distante
dali. “Um alvo fácil”, provavelmente terá pensado o poderoso cangaceiro. O
desenrolar dos fatos, porém, lhe revelará um grave erro de prognóstico.
Em que pese a
correria desenfreada que se seguiu ao alarma dado por Leonardo Pinheiro, os
homens de Nelson Leite aprestam munição e armas. Tudo é feito com rapidez e
disciplina. Ao mesmo tempo, mulheres, velhos e crianças – a seguir igualmente
os apelos do Subdelegado – buscam refúgio na caatinga ou em sítios de
familiares fincados nos arredores de Belém. Pequenos “tesouros” são previamente
enterrados em lugares seguros. Potes de barro, caixas de papelão, latas de
querosene: qualquer coisa serve como invólucro para as ‘economias’ adquiridas
ao longo de anos de trabalho.
Em pouco
tempo, os defensores se organizam e estão posicionados em lugares previamente
definidos pelo Subdelegado. Dedos nervosos aguardam o desfecho do
ataque. Uma testemunha registra os momentos iniciais do entrave:
“O ‘delegado’
Nelson Leite distribuiu uns homens nos pontos mais altos da rua principal, dois
outros guarnecendo as laterais e três instalados no teto da Igreja. Quando
Lampião entrou com o bando, pela ‘rua velha’, começou a fuzilaria”. (Sinforosa
Claudina de Galiza, entrevista).
Nelson Leite,
de fato, engendrara bom plano. Distribuíra os poucos rifles e fuzis disponíveis
com os onze defensores. Repartiu com irrepreensível parcimônia a rala munição
que tinha ao seu dispor. Os melhores atiradores foram destacados para pontos
estratégicos. No teto da igreja – prédio mais alto e com abrangente visão dos
arredores – posicionaram-se Luís Rodrigues, Moisés Lauriano, José Teotônio e
Joaquim Estevão. O tempo corre lento. Não há novidades. Até perto das oito
horas nem sinal da sinistra patuléia de chapéu de couro. A espera alongada
transforma as trincheiras em ninhos de ansiedade.
De súbito,
Luís Rodrigues dá o alarma. Alguém se aproxima. O luar denuncia vultos sorrateiros.
Homens armados aproximam-se do povoado pela ‘rua da Proa’. É o início da
invasão. De pronto, grande incêndio ilumina a noite na pequena Belém. Grossas
labaredas passam a consumir a casa de um agricultor e espalham-se rapidamente
para um antigo curral e plantação de milho já há dias quebrado. O incêndio.
Método infalível para incutir terror aos sitiados.
Josefa Augusta
Fernandes, bem jovem à época do evento, anota a origem do fogaréu:
“Lampião
começou destruindo a propriedade do finado João Gabriel, tendo em seguida
tocado fogo nos currais e nas plantações de feijão e milho. O fogo serviu para
alertar os homens da cidade, sendo que eles já estavam em posição nos
principais pontos daqui”. (Maria do Socorro Fernandes, entrevista).
Não havia mais
o que esperar. Ao primeiro grito de comando de Nelson Leite, trava-se pesado
tiroteio. Lampião, decerto, não esperava semelhante reação. A fantástica
fuzilaria oriunda da Vila lhe faz recuar. De efeito, os tiros vindos da rua da
Proa tornam inviável uma entrada por aqueles lados.
Sem sucesso na
primeira investida, o chefe de cangaço tenta confundir os defensores
entrincheirados. Sob sua batuta, os bandoleiros passam a gritar, urrar como
animais e a praguejar insultos e xingamentos aos defensores e suas famílias. A
permear a gritaria, grossas baterias de tiros.
O
rei-do-cangaço deseja tomar Belém. Tentará de todas as maneiras penetrar no
vilarejo para vilipendiar suas casas e lhes extrair até o último ‘cobre’. Sem
demora, ordena aos comandados a ‘abertura’ de uma linha de fogo pela lateral,
com o fito de invadir a Vila pelo flanco oposto.
Nada,
entretanto, parece gerar resultado prático. A posição privilegiada dos
atiradores locados no telhado da igreja permite que tiros sejam disparados em
todas as direções. A resistência agiganta-se com estrondos de repercussão
fantástica e de curiosa origem. Nelson Leite improvisara – no pouco tempo que
dispôs antes da consecução do ataque – algumas “ronqueiras” e logo começou a
fazer uso dos artefatos. Os estrondos causados pelas bombas caseiras são
assustadores e surpreendentemente surtem efeito. Um simples improviso que, ao
que tudo faz crer, parece realmente ser a chave para uma vitória. (1)
Em pouco,
qualquer objeto metálico em formato cilíndrico – e vazado pelo menos em um dos
lados – torna-se invólucro para manufatura dos pesados rojões. Joel Vieira, com
dezoito anos à época do fato, registrou em depoimento:
“Os que
estavam no alto da Igreja, começaram a atirar de ponto e também para dentro da
igreja, causando um eco que parecia canhão. O Subdelegado também tinha
improvisado umas ‘ronqueiras’, feitas com pólvora socada dentro de latas, e de
quando em quando estourava uma. Já estava escuro, e aqueles tiros davam a
impressão que havia um canhão com a gente”.
No alto da
igreja, Luis Rodrigues – artilheiro mais aguerrido – resolve acrescentar
estrondos adicionais aos estampidos das ‘ronqueiras’ improvisadas pelo
Subdelegado. Dessa forma, com o intuito de causar impacto ainda maior, começa a
atirar quase em paralelo à lateral da nave do prédio sagrado. Estrondos
fantásticos, causados pelo eco do salão quase vazio, dão ainda mais ânimo aos
outros defensores entrincheirados no teto da igreja. Decide-se que alguns
deles, alternadamente, passarão a atirar também para dentro da nave.
A estratégia
funciona. Os estrondos se multiplicam. De fato, para quem está do lado de fora,
resta a impressão de que algum tipo de canhão está sendo utilizado. Os
cangaceiros, atarantados, mantém posição de cautela e não avançam. O escuro da
noite enevoada pela fumaça dos disparos os impedem de enxergar, na verdade, o
tipo de “arma” adicional que ora se usa na defesa do arruado. O engodo
paulatinamente funciona.
No calor da
peleja, porém, passos apressados denunciam silhueta humana esgueirando-se
próximo à igreja. A escuridão da noite não permite distingui-la com precisão.
Da torre principal um defensor atira. O civil Antônio Correia é atingido.
Confundiram-no com um cangaceiro. Correia morre pouco tempo depois em razão do
profundo ferimento à altura do pulmão. É a única baixa durante o combate.
Os cangaceiros
não desistem e tornam a investir contra o território inimigo por uma ruela
lateral à igreja. Lampião brada ordens aos seus homens. Todos, contudo, parecem
hesitar em razão dos estrondos que continuam a reverberar entre as casas da
pequena Belém.
Do lado dos
defensores, um voluntário prontifica-se para preparar novas ronqueiras, de
forma ininterrupta, servindo-se como espécie de municiador.
Dominado pela
ira, Lampião manda reacender o fogo que arde tênue na propriedade de João
Gabriel. O vento rapidamente espalha as labaredas em espantosa velocidade. As
chamas consomem vacas e bezerros cativos no cercado contíguo a casa. Urros de
dor de animais engolidos pelas chamas desenham dantesco suplício. Poucos
escapam ao bizarro holocausto.
A derradeira
tentativa de conquista do povoado fracassa. Com pesar, os cangaceiros
reconhecem que não conseguirão penetrar em Belém.
O
desconhecimento dos pontos de defesa, o espocar das “ronqueiras”, o ribombar de
tiros reverberados pelo salão da igreja, a configuração física da vila, o
cansaço da longa marcha até ali. Tudo parece sugerir uma retirada. Lampião não
demora em perceber o malogro da empreitada:
– Vamos sair
para economizar munição! – grita furioso.
Ainda se ouvem
tiros por mais um quarto de hora. Aos poucos os cangaceiros se retiram do
campo de luta. Disparos tornam-se esparsos. Ao compasso da retirada, a
fuzilaria regride até reinar o mais absoluto silêncio. Lampião e seus homens
deixam Belém em definitivo. É ainda Joel Vieira quem destaca:
“Eles tentaram
muito, mas não conseguiram entrar. Antes das sete horas da noite, já tinham ido
embora. No dia seguinte, o festejo foi grande, pois todos pensavam que ia
morrer muita gente, mas não. Apenas um rapaz morreu vítima de uma ‘bala doida’
e caiu ali perto da Igreja. Tirando o incêndio na propriedade de João Gabriel,
o prejuízo aqui foi pouco. Com pouco recurso, a gente botou Lampião prá
correr!”.
E Lampião, de
fato, jamais voltou a Uiraúna. Nos dias seguintes, um telegrama é enviado para
as principais cidades do sertão do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Anunciava-se a vitória de um povo contra o poderoso rei do cangaço. O
Intendente local assinou o comunicado:
“Fomos
atacados dia 15 famigerado Lampião. Resistimos cerrado fogo, bandoleiros
recuaram. Vítima tiroteio Antônio”. (a) José Caboclo.
É a vitória
inconteste de um sumário grupo de cidadãos contra quase quarenta cangaceiros.
Uma vitória nascida da confiança de homens do povo; sertanejos comuns. Não
houve – como aconteceu em Mossoró – um grande lapso de tempo para a preparação
de uma defesa. Não houve reuniões; não se teve tempo para comprar armas
modernas. Não havia sequer uma torre na igrejinha da cidade. Existia, apenas, a
vontade de preservar os próprios lares.
Uiraúna se
defendeu heroicamente, a exemplo da resistência mostrada pela pequena Nazaré,
em Pernambuco, quatro anos antes. Uiraúna impediu a entrada dos cangaceiros de
Lampião como faria a população sergipana de Capela, liderada pelo destemido
Mano Rocha, três anos mais tarde.
A vitória do
povo de Uiraúna foi obtida sem recursos, sem alarde e sem exploração midiática
posterior. Vitória conseguida sem um ‘notável planejamento prévio’ e sem
colóquios barulhentos. Vitória de um pequeno grupo de homens pegos de surpresa
pelo maioral do cangaço. Vitória, porém, recheada de atos do mais real e
verdadeiro heroísmo. Vitória, enfim, da inteligência sobre a força.
Sérgio Dantas
Sérgio Augusto
S. Dantas é autor dos livros “Lampião no Rio Grande do Norte – A História da
Grande Jornada” (2005), “Antônio Silvino – O Cangaceiro, o Homem, o Mito”
(2006) e “Lampião: Entre a Espada e a Lei” (2008).
NOTA:
(1) s.f. – Ronqueira:
“Cano de ferro, preso a uma tora de madeira e cheio de pólvora, o qual produz
grande detonação quando se lhe inflama a escorva”. (Aurélio). As ronqueiras já
haviam sido largamente usadas em revoltas populares, como na guerra de Canudos.
N do A.
FONTES
UTILIZADAS:
A União,
edições de 17 e 18 de maio de 1927.
DANTAS, Sérgio
Augusto de Souza. LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE – A HISTÓRIA DA GRANDE
JORNADA. Editora Cartgraf, Natal/RN. 2005. 452 pgs.
SOUZA, Tânia
Maria de. UIRAÚNA NO ROTEIRO DE LAMPIÃO, in Revista Polígono, 1997, 158 pgs.
Entrevistas
concedidas ao autor por Maria do Socorro Fernandes (2003), Joel Vieira da Silva
(2001), Josefa Augusta Fernandes (2000) e Sinforoza Claudina de Galiza (2000).
http://coisasdecajazeiras.com.br/?p=13785
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
http://josemendespereirapotiguar.com.br
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