Autor Rostand Medeiros
Teria
realmente acontecido um encontro entre o cangaceiro Lampião e um grupo de
escoteiros venezuelanos na caatinga nordestina?
Principalmente
por ser um movimento que tem como objetivo apoiar os jovens em seu
desenvolvimento mental, físico e espiritual, para que possam desempenhar um
papel construtivo na sociedade, com um forte foco em atividades ao ar livre e
habilidades de sobrevivência, foi que nas primeiras décadas do século passado o
escotismo se tornou uma atividade extremamente popular em todo o mundo[1].
E tudo começou
com o major-general do exército britânico Robert Stephenson Smyth Baden-Powell.
Este possuía uma excelente carreira no serviço militar e tinha adquirido muito
prestígio na Inglaterra pela sua atuação na Segunda Guerra dos Bôeres[2].
Robert
Stephenson Smyth Baden-Powell – Fonte – wpsess.octhium.com.br
Sua ascensão à
fama alimentou as vendas de um pequeno manual militar denominado Aids to
Scouting. Neste trabalho lançado em 1899, Baden-Powell tratou
principalmente do treinamento de soldados na função de observadores, batedores
e trouxe explicações sobre orientação no campo, além de métodos de como
sobreviver com a alimentação encontrada na natureza.
Em seu retorno
à Inglaterra o general soube que Aids to Scouting era utilizado por
professores e organizações de juventude como um primeiro manual escoteiro. Ele
também percebeu que muitos garotos mostraram considerável interesse no seu
trabalho e aquilo lhe apontou que deveria escrever um manual para o público mais
jovem.
Baden-Powell
publicou no início de 1908, em seis edições quinzenas, uma “revista” chamada Scouting
for boys (Escotismo para Rapazes). Este trabalho estabeleceu as atividades
e programas que as organizações de juventude poderiam utilizar em saídas no
campo.
A reação a
este material foi fenomenal, além de bastante inesperada. Em um tempo
muito curto patrulhas escoteiras foram criadas em toda Inglaterra, todos
seguindo os princípios de Baden-Powell. No mesmo ano Scouting for
boys foi lançado no formato de um livro[3].
O sucesso foi
tanto que em 1909 era fundada no Chile a primeira associação de escoteiros da
América do Sul. Logo jovens de outros países da região adotavam a ideia.
Escotismo na
Venezuela
Foi Ramón
Ocando Pérez que organizou em 1913 as primeiras patrulhas escoteiras na cidade
de Maracaibo, Venezuela, sendo ele considerado o percursor do escotismo neste
país. Tal como noutras partes do mundo, na Venezuela o movimento escoteiro logo
conseguiu grande aceitação na sociedade e uma forte participação dos jovens.
Escoteiros
venezuelanos – Fonte –http://museovirtualscoutvzla.com
Ao longo dos
anos foram criados novos grupos de escoteiros no país, com intensa
movimentação. Logo as patrulhas seguiam para locais cada vez mais distantes,
realizando o que era conhecido na época como “Raid pedestre.
Em 12 de
dezembro de 1934 um grupo de vinte escoteiros venezuelanos iniciou uma destas
aventuras, cujo objetivo era sair de Caracas e chegar caminhando ao Rio de
Janeiro[4]. A liderança destes escoteiros
estava a cargo do “Capitán Scouts” Andrés Zambrano, um jovem oriundo de
Maracaibo, então com 21 anos e filho do general Alejandro Rondón Zambrano[5].
O grupo teria
então entrado pelo Brasil através da fronteira amazônica, mas infelizmente são
mínimas as informações sobre o trajeto destes escoteiros, as cidades em que
estiveram e o que fizeram. Mas, segundo entrevistas do próprio Andrés Zambrano,
ele e seus colegas tiveram um terrível encontro nas caatingas nordestinas com
ninguém menos que o cangaceiro Lampião.
A Primeira
Notícia e o Desconhecimento dos Diplomatas Venezuelanos Sobre os Escoteiros.
Esse episódio
da história do cangaço de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, ocorreu no
último mês de 1935 e foram correspondentes na Bahia que primeiro transmitiram
noticias deste encontro para o periódico carioca “A Noite”. Este era um jornal
que sempre publicava notícias relacionadas a Lampião e ao cangaço que existia
no distante Nordeste.
Tudo indica
que o grupo de escoteiros chegou a Salvador no dia 14, ou 15 de dezembro. O
certo é que já no dia 16 daquele mês a notícia era publicada na primeira página
de “A Noite”. Mas, de maneira geral, as primeiras notícias divulgadas sobre
estes escoteiros foram limitadas.
Informou-se
basicamente que Zambrano e seus amigos haviam adentrado o território baiano em
outubro de 1935. Ao seguirem a pé pela caatinga os venezuelanos ouviram várias
histórias dos sertanejos sobre o temível Lampião, até que em certo momento
foram surpreendidos por cangaceiros armados em um lugar chamado “Água Bella”[6].
Nesta primeira
reportagem publicada o venezuelano Zambrano informou que no início houve certa
confusão pela incompreensão dos cangaceiros diante dos jovens que falavam
espanhol, mas ele e seus amigos passaram a noite toda presos, esperando serem
trucidados. Foram duas mulheres, entre elas Maria Bonita, que pediram pelas
vidas dos estrangeiros e eles foram libertados.
Notoriedade –
Lampião e Maria Bonita com um exemplar do jornal carioca “A Noite Ilustrada”
O mais
interessante (e estranho) nas primeiras notícias divulgadas por Zambrano, é que
os venezuelanos estavam “armados” e foram despojados pelos homens de Lampião do
armamento e de suas munições[7].
O texto do
jornal finalizava comentando que o grupo estava Salvador e, como era praxe
nesta época quando um grupo de escoteiros estrangeiros chegava a uma cidade que
estava no itinerário de um “Raid pedestre”, normalmente eles foram recebidos
pelas autoridades locais e tencionavam seguir o mais rapidamente possível para
o Rio de Janeiro.
Enquanto os
venezuelanos se preparavam para partir de Salvador, na então Capital Federal,
após receberem as notícias do correspondente na Bahia, os jornalistas de “A
Noite” não perderam tempo e partiram céleres para buscar informações oficiais
sobre aqueles escoteiros na representação diplomática da Venezuela. A resposta
dos membros da legação daquele país no Brasil foi que aquela empreitada era “um
empreendimento sem caráter oficial” e “nada sabiam a respeito” [8].
Junto à Polícia Mineira
Mas somente
com a chegada do novo ano de 1936 é que vamos ter mais detalhes deste encontro
dos escoteiros com Lampião e alguma nova notícia dos venezuelanos.
No final de
fevereiro o “Capitán Scouts” Andrés Zambrano estava sozinho em Belo Horizonte,
onde deu uma declaração ao correspondente do jornal “A Noite” lotado naquela
cidade[9].
Zambrano
comentou que estivera na cidade mineira de Corinto, mais de 1.200 quilômetros
de Salvador, onde passou por vários problemas. Ali o delegado Oswaldo Machado
prendeu o escoteiro que “pregava” para a pequena comunidade. O delegado tinha a
suspeita que o venezuelano fardado fosse um “elemento extremista”. O jovem
escoteiro foi conduzido sob escolta para a capital mineira, distante cerca de
240 quilômetros de Corinto[10].
Na sede da
Polícia Central o estrangeiro aparentemente passou nos policiais mineiros uma
versão venezuelana do brasileiríssimo “sabe com quem tá falando?”. Pois junto
às autoridades presentes Zambrano informou que “era filho do general Alejandro
Rondón Zambrano” e foi “prevenindo” os policiais que estes não poderiam detê-lo
por “mais de 24 horas”, que ele “conhecia direito internacional” e que se
necessário faria “valer seu direito se fosse preciso”.
Lampião –
Fonte – lounge.obviousmag.org
Talvez pelo
uniforme, ou pela segurança nas palavras, o certo é que o escoteiro venezuelano
“não esquentou a cadeira” na chefatura de polícia. Logo suas declarações foram
registradas no então Cartório de Vigilâncias e Capturas e ele foi
liberado.
Da polícia
seguiu para ser entrevistado pelo jornalista correspondente de “A Noite”. Que
por sinal estava muito mais interessado sobre o encontro de Zambrano com
Lampião, do que as suas peripécias junto aos “homens da lei”.
“- Toca,
Negrada, Levanta. Vamos ao Chefe”.
Durante a
entrevista Zambrano se apresentou vestido de uniforme cáqui, com galões de
capitão e um grande chapéu de feltro escuro e abas largas. Já o correspondente
de “A Noite” mostrou ao venezuelano a edição de dezembro de 1935 daquele
jornal, onde estava a primeira reportagem sobre a aventura dos escoteiros
venezuelanos. Zambrano também apresentou ao jornalista uma caderneta com
anotações e declarações de autoridades brasileiras, comprovando a sua passagem
por vários locais do nosso país.
Para Zambrano
a viagem pelo Brasil seguiu sem maiores problemas, mas que o nome e o medo que
existia em relação a Lampião era comentado em vários locais por onde ele
passou. Entretanto Zambrano e seus amigos fizeram pouco caso das façanhas do
cangaceiro. Pensavam até que Lampião seria uma espécie de “superstição” dos
brasileiros incultos do norte.
Zambrano
entrevistado em Belo Horizonte.
Superstição,
ou não, Zambrando conta que em uma manhã tranquila, quando ele e seus camaradas
se encontravam a “14 léguas” (84 quilômetros) de “Água Bella”, pararam todos
embaixo de algumas árvores para beber água e comer bananas, foi quando o grupo
foi cercado por 24 cangaceiros fortemente armados “de fuzis e facas” e montados
em alimárias.
Os guerreiros
encourados apearam e o que comandava o grupo falou com extremo autoritarismo
“-Toca, negrada, levanta. Vamos ao chefe”. Na mesma hora Zambrano entendeu que
iria ficar frente a frente com Lampião.
Os
venezuelanos então acompanharam o bando de cangaceiros por cerca de cinco
léguas (30 quilômetros), em meio a uma caatinga fechada.
No esconderijo
Zambrano descreveu que Lampião recebeu os estrangeiros no final da tarde, muito
a vontade, embalando-se “em uma rede vermelha e amarella” e que entre suas
pernas estava “um fuzil cravejado de libras”, que após a “análise” do
venezuelano, constatou serem “canadenses”[11].
Sem perda de
tempo Lampião ordena autoritariamente aos estrangeiros explicarem quem eles
eram e Zambrano cai na besteira de responder em espanhol. No seu relato o
escoteiro afirma que nesse momento o cangaceiro deu um salto da rede e gritou
“-Vocês são é polícia paulista. Morrerão todos amanhã!”.
Manchete do
Diário de Pernambuco, de 4 de outubro de 1935, sobre a morte de quatro
cangaceiros na propriedade Cachoeirinha. Provavelmente foi sobre estas mortes
que Lampião comentou com Zambrano.
Em meio a
muitos impropérios Lampião continuou vociferando “-Vocês já mataram quatro
tenentes meus, cada tenente meu vale cem de vocês, logo, são quatrocentos que
eu tenho de vingar” [12].
Na sequência o
chefe ordenou ”-Passa a revista” e os escoteiros foram despojados de quatro
contos e quinhentos mil réis, chapéus, suas fardas de cor kaki e ficaram
amarrados “apenas de cuecas”. Zambrano não relatou nesta entrevista em Minas
Gerais, conforme tinha dito anteriormente em Salvador, que ele e seus amigos
entregaram armas e facas aos cangaceiros.
Lampião também
comentou com o venezuelano que ele parecia com “Manoel Neto”, um valente
policial, membro do famoso grupo dos Nazarenos, que infligia séria perseguição
aos cangaceiros. Zambrano, logicamente, se derramou em negativas.
Lampião e
Maria Bonita – Fonte – blogdomendesemendes.blogspot.com
Em outro
momento, buscando ser extremamente polido com seu algoz, Zambrano o chamou de
“-Sr. Lampião”, mas a resposta veio rápido, indignada e transmitida na base do
grito: “- Meu nome é Virgulino Ferreira, seu malcriado!”.
Amarrados e
despidos, por volta das seis da noite a fome e a sede apertaram os
estrangeiros, que clamaram por água e comida. Lampião não estava sendo um bom
anfitrião e mandou para os escoteiros algumas canecas com café com sal e água
com pimenta. No que Zambrano esboçou gesto de repulsa pelo que lhes foi
oferecido, Lampião comentou aos gritos “-Não gostou? Aqui se trata bem assim os
que vão morrer”. Depois completou ameaçadoramente para o grupo: “-Ou bebem, ou
parto a testa de vocês na bala. Aqui tenho a minha lei”. E abriu fogo para o
alto com uma pistola Parabélum.
Salvos Pela
Maria do Capitão e as Contradições do Escoteiro
Os escoteiros
venezuelanos passaram parte da noite amarrados e, segundo declarações de
Zambrano, por volta da meia noite chegou ao coito de Lampião um grupo com cerca
de quinze cangaceiros. Dentre estes estava uma jovem cabocla, esbelta, trajando
camisa branca, culotes, perneiras, com várias joias, um punhal na cintura e que
ele a considerou de estatura “alta”.
A Maria do
Capitão Lampião
Esta perguntou
a um dos cabras de Lampião que vigiava o grupo quem eram eles e o que
pretendiam fazer com aqueles estranhos? “- Liquida-los” foi a resposta[13].
A cabocla
então se aproximou do venezuelano e este lhe fez rogos pela sua liberdade e de
seus amigos. A jovem brasileira pegou no queijo do venezuelano, balançou sua
cabeça e disse “-Não se assuste. Não lhe faremos mal. Você é bonitinho, rapaz”.
Na sequência a mulher seguiu faceiramente para perto do chefe. Depois os
escoteiros souberam que ela era Maria Bonita, a mulher do chefe, a Maria do
Capitão Lampião.
Zambrano
afirmou que considerou “esquisita” a atitude daquela mulher.
Mas o que deixou a ele e seus companheiros verdadeiramente “estupefatos” foi que dez minutos depois do encontro com Maria Bonita eles foram desamarrados pelos cangaceiros, que lhes entregaram suas roupas, seus chapéus e os mandaram embora. Como pilheria final dos “Guerreiros do Sol” nos escoteiros venezuelanos, cada um dos estrangeiros foi contemplado com um belo chute na bunda como forma de despedida[14].
Mas o que deixou a ele e seus companheiros verdadeiramente “estupefatos” foi que dez minutos depois do encontro com Maria Bonita eles foram desamarrados pelos cangaceiros, que lhes entregaram suas roupas, seus chapéus e os mandaram embora. Como pilheria final dos “Guerreiros do Sol” nos escoteiros venezuelanos, cada um dos estrangeiros foi contemplado com um belo chute na bunda como forma de despedida[14].
Como
apontamentos finais sobre esta entrevista concedida por Zambrano em Belo
Horizonte, se insere algumas declarações bastante contraditórias.
Segundo consta
nas notícias transmitidas de Salvador em dezembro de 1935, e publicadas no
jornal carioca “A Noite”, Zambrano e seus amigos iriam partir de Salvador em
direção ao sul do Brasil[15].
Mas, contradizendo o que foi escrito anteriormente, Zambrano afirmou ao
correspondente mineiro que o medo dos seus companheiros foi tanto após o
encontro com Lampião, que os outros retornaram para a Venezuela de navio e
apenas ele seguia na jornada a pé pelo nosso país.
Mas estranho
ainda está no fato de Zambrano, mesmo com ele e seus companheiros tendo sido
revistados pelos cangaceiros, pedir publicamente no final da reportagem que
Oswaldo Machado, o delegado da cidade de Corinto, lhe devolvesse um revólver
tomado por esta autoridade quando ele foi detido na pequena cidade mineira. O
venezuelano justificava a devolução da arma pelo fato dela ser um presente do
Dr. Aquiles Lisboa, então governador do Maranhão.
Bem, ou esse
correspondente de “A Noite” falseou as declarações do escoteiro venezuelano, ou
os cangaceiros de Lampião eram muito incompetentes na hora de revistar os
prisioneiros do grupo, ou Zambrano era um grande de um mentiroso!
Outra
Entrevista e Novas Contradições
Aparentemente
a direção do jornal “A Noite” achou que valia a pena investir um pouco mais no
escoteiro, pois ele concedeu uma nova entrevista na sede deste periódico no
Rio. Ele chegou a então Capital Federal em 15 de fevereiro e veio de Minas
Gerais por via férrea[16].
Zambrano
concedendo uma entrevista na sede do jornal “A Noite”, no Rio.
Sobre o local
de sua captura voltou a afirmar que tinha sido a “14 léguas” de “Água Bella”,
mas agora informou que o grupo partiu de Aracaju, Sergipe, e durante a jornada
houve o encontro com os bandoleiros[17].
Já em relação
ao seu encontro com o chefe cangaceiro no meio da caatinga, o escoteiro
acrescentou que viu o mesmo retirando de uma bolsa, e contando, uma grande
quantidade de dinheiro em cédulas e todas amarradas em volumosos maços.
Lampião e seus
cangaceiros
Descreveu que
o “Rei do Cangaço” estava com uma “gravata vermelha” (provavelmente um lenço)
com um rico alfinete brilhante, caçava botas, culotes, camisa kaki e tinha nos
dedos das mãos vários anéis de fina qualidade, todos com valiosas pedras
preciosas.
Lampião
perguntou quem eram aqueles rapazes fardados. “-Quem é o chefe deste
batalhão?”, inquiriu Virgulino. Foi quando Andrés Zambrano se apresentou,
afirmando ser da Venezuela e não trabalhar para a polícia. Como o venezuelano
Zambrano insistia em dialogar no seu idioma nativo com Lampião, este último
pegou um fuzil e lhe deu uma coronhada no peito e o estrangeiro foi ao chão.
Após o escoteiro se colocar de pé, seguro por dois cangaceiros, este dispara na
cara do “Rei do Cangaço: “O senhor deve me tratar como eu mereço. Sou um
estrangeiro e tenho direito a ser respeitado. O senhor está desrespeitando a
sua lei e o seu governo”.
Realmente
nessa nova entrevista o jovem escoteiro Zambrano se apresentou ao jornalista
como um homem muito mais decidido e “macho” na ocasião do seu encontro com o
maior bandoleiro da história do Brasil.
Chamou atenção
do jornalista que entrevistava Zambrano a declaração que o cangaceiro Lampião
dormia uniformizado, com a sua arma muito próximo, tinha o sono “levíssimo” e
acordava ao menor barulho. Para o estrangeiro o chefe cangaceiro desconfiava de
todos, pois ele presenciou Lampião inicialmente dormindo em uma rede e depois
de algum tempo este se levantou, pegou uma lona e foi dormir em um local
escuro. Outro fato comentado sobre Lampião foi que, na opinião do venezuelano,
ele poderia “está tuberculoso” por ter uma tosse seca.
Quanto a Maria
Bonita o venezuelano acrescentou que ela vinha acompanhada de “um menino de
onze anos de idade”, mas não disse quem seria esse garoto. Desta vez também
informou que a mulher de Lampião convenceu o chefe a soltá-los, depois dos
“visitantes” terem dado sua palavra de honra de que não informariam à polícia o
paradeiro do bando.
Talvez isso
explique, mesmo em parte, informações tão desencontradas de Zambrano sobre o
local onde se deu o encontro com os cangaceiros.
Mas nesta nova
entrevista existe algo de chega a ser verdadeiramente hilário nas declarações
do venezuelano, que mostra claramente seus exageros e contradições. Na primeira
entrevista ele afirmou que ele e seus colegas ficaram amarrados “apenas de
cuecas”. Já nesta segunda declaração os venezuelanos ficaram presos totalmente
“nus”.
Fonte –
www2.uol.com.br
Se, diante do
antigo e tradicional recato sertanejo em relação às mulheres, já era complicado
aceitar que os cangaceiros deixaram estes homens presos em pleno acampamento,
com cangaceiras presentes, amarrados em “trajes menores”, mais difícil ainda é
aceitar a segunda declaração de Zambrano. Poder-se-ia até mesmo ser comentado
que eles ficaram presos com poucas roupas para, no caso de uma fuga, a
tentativa ser dificultada pelas plantas cortantes da caatinga. Mas as mudanças
de versões de Zambrano atenta contra suas declarações.
Ao final da
entrevista Zambrano informava que considerava sua aventura concluída, iria se
apresentar as autoridades consulares venezuelanas lotadas no Rio e retornar ao
seu país de navio[18].
Zambrano em
São Paulo Com Seus Companheiros
Mas, segundo
noticiaram dois jornais brasileiros, o “Capitán Scouts” Andrés Zambrano não
voltou para sua terra natal.
Dez dias
depois de conceder a entrevista no Rio para o jornal “A Noite”, Zambrano estava
em São Paulo, onde inclusive foi recebido em audiência oficial pelo engenheiro
Fabio Prado, então prefeito da capital paulista.
Nota do jornal
Correio da Manhã 23 de fevereiro de 1936
Um detalhe
interessante deste encontro foi que desta vez Zambrano estava acompanhado dos
seus amigos escoteiros, os mesmo que haviam supostamente retornado de Salvador
para Venezuela.
Depois destas
notícias dos escoteiros venezuelanos em São Paulo, não consegui mais nenhuma
informação deste grupo no Brasil.
Depois de
tantas contradições, tantas histórias estranhas, são muitas as conjecturas e
dúvidas em relação ao que Zambrano comentou sobre os cangaceiros.
Nota da
Prefeitura de São Paulo, publicado no Diário de São Paulo em 21 de fevereiro de
1936
Será que estes
escoteiros realmente estiveram no coito de Lampião?
Ou será que
talvez, em meio às andanças pelo sertão, Zambrano tenha recebido várias
informações sobre Lampião de pessoas que estiveram com o cangaceiro e, buscando
a fama no Brasil, criou toda essa história?
Ou seria
possível que tudo tenha sido uma criação dos jornalistas de “A Noite”, com o
intuito de vender exemplares no Rio e o venezuelano participando da farsa para
ganhar notoriedade?
E os outros
escoteiros venezuelanos, onde estavam enquanto Zambrano aparecia nas páginas
dos jornais brasileiros?
No final das
contas percebemos, por razões óbvias, que todos os relatos apresentados por
Zambrano eram informações sumamente difíceis de serem averiguadas junto a
Lampião, Maria Bonita e os outros cangaceiros[19].
O fato que
mais me intrigou em toda esta história foi a total ausência de quaisquer
referências sobre o “Capitán Scouts” Andrés Zambrano, seus companheiros e a sua
rocambolesca aventura por terras brasileiras nos inúmeros sites da internet que
tratam da história do escotismo na Venezuela.
Ao realizar
esta pesquisa descobri que os escoteiros venezuelanos valorizam muito a
história deste movimento em seu país e fazem questão de divulgar a maior
quantidade possível de informações. Inclusive os sites que encontrei são
extremamente informativos, realizados com esmero, qualidade e trazendo uma
grande quantidade de informações históricas produzidas e dispostas de maneira
clara e ágil.
Bem diferente
do caso dos escoteiros que estiveram no Brasil, temos inúmeras referências
sobre o “Raid pedestre” que ligou Caracas e Washington, capital dos Estados
Unidos.
Jornal
venezuelano El Heraldo, 17 de junho de 1937
Em 11 de
janeiro de 1935 partiram a pé de Caracas, a capital venezuelana, em direção a
Washington, a capital dos Estados Unidos, os escoteiros Rafael A. Petit e Juan
Carmona. Este evento, ou teve uma grande repercussão no país, sendo a aventura
dos dois escoteiros reproduzida extensamente pela imprensa local, sendo
cultuada até os dias de hoje[20].
Mas nada sobre
Zambrano, seus companheiros e sua passagem pelo Brasil.
NOTAS
[1] Sobre
a história do escotismo verhttps://en.wikipedia.org/wiki/Scouting (Em
inglês).
[2] As Guerras
dos Bôeres (ou Guerras de libertação na historiografia bôer) é o nome dado
aos dois conflitos travados entre o Reino Unido e as duas repúblicas bôeres
independentes, o Estado Livre de Orange e a República Sul-Africana (República
do Transvaal). Os dois conflitos ocorreram, respectivamente de 16 de dezembro
de 1880 a 23 de março de 1881 e de 11 de outubro de 1899 a 31 de maio de 1902.
O cerne do conflito estava na gradual expansão britânica pelo sul do continente
africano, em territórios previamente ocupados por descendentes de antigos
colonos holandeses.
[3] Sobre
a vida de Baden-Powell verhttp://www.scatacook.org/HistoryBadenPowell.htm (Em
inglês).
[4] Ver
jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 16 de dezembro de
1935, Pág. 1.
[5] Ver
jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 30 de janeiro de
1936, Pág. 1.
[6] Zambrano
declarou que este encontro aconteceu no sertão baiano, a “14 léguas” (84
quilômetros) de um local chamado “Água Bella”. Efetivamente existe uma
localidade denominada Água Bela na Bahia, entretanto esta comunidade fica
localizada na Mesorregião do Centro Sul Baiano, na área territorial do
município de Bom Jesus da Serra, a 120 km da cidade de Vitória da Conquista e a
470 de Salvador. Uma área na qual Lampião e seu bando jamais pisou. Em relação
à história do cangaço, o local mais comentado e com um nome mais parecido ao
narrado por Zambrano é o município pernambucano de Águas Belas. Mas este está
localizado a cerca de meros 20 quilômetros da fronteira alagoana e a mais de
100 da fronteira baiana.
[7] Não
foi informado o tipo de armamento que os escoteiros levavam. Ver jornal “A
Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 16 de dezembro de 1935, Pág. 2.
[8] Ver
jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 16 de dezembro de
1935, Páginas 1 e 8.
[9] Zambrano
concedeu a entrevista em Belo Horizonte na manhã de sexta-feira, 30 de janeiro
de 1936, tendo sido publicada uma pequena nota sobre o escoteiro venezuelano na
edição carioca do jornal naquele mesmo dia. Mas na edição do sábado houve uma
publicação bem mais detalhada e destacada. Ver jornal “A Noite”, Rio de
Janeiro, edição de sábado, 1 de fevereiro de 1936, Pág. 1 e 2.
[10] Não podemos esquecer que menos de dois
meses antes, em 23 de novembro de 1935, eclodira em Natal a fracassada
Intentona Comunista e as forças policiais do país estavam em total estado de
alerta e a caça de elementos suspeitos de colaboração com os comunistas.
[11] Parece meio improvável que o “Rei do
Cangaço” tenha deixado este escoteiro estrangeiro examinar as moedas presas na
bandoleira de sua arma pessoal. A não ser que Zambrano tenha ficado muito
próximo ao cangaceiro e do seu fuzil.
[12] Provavelmente Lampião comentou para os
venezuelanos sobre a morte de quatro cangaceiros ocorrida três meses antes. Mas
neste caso, entre os algozes dos bandidos, não existiu nenhum policial. No dia
19 de setembro de 1935, no município alagoano de Mata Grande, na fazenda
Aroeirinha, o proprietário Felix Alves Rocha, seus quatro filhos, dois
sobrinhos e outro proprietário rural da região, montaram uma emboscada contra
os cangaceiros Limoeiro, Suspeita, Fortaleza e Medalha. A ideia desta ação se
deveu ao fato de Felix Alves ser suspeito de proteger e dar apoio a cangaceiros
e, para evitar as fundamentadas suspeitas dos policiais, nada melhor do que
matar alguns bandoleiros. Apesar da ação violenta ter redundado na morte dos
quatro cangaceiros, Felix Alves também pereceu neste combate. Ver “Diário de
Pernambuco”, Recife, edição de quinta-feira, 10 de outubro de 1935. Pág. 10.
[13] Diferentemente da primeira entrevista
concedida em Salvador, quando “duas mulheres” pediram pela vida dele e de seus
companheiros, nas entrevistas que Zambrano concedeu então só relatou que foi
salvo por Maria Bonita.
[14] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro,
edição de sábado, 1 de fevereiro de 1936, Pág. 1 e 2.
[15] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro,
edição de quinta-feira, 16 de dezembro de 1935, Páginas 1 e 8.
[16] Para a imprensa do Sudeste do país,
relatos sobre a brutalidade de Lampião sempre atraíam leitores e a existência
de um estrangeiro que conseguiu ser libertado depois de encarar o maior dos
cangaceiros era mais do que o esperado. Era valioso!
[17] Se a declaração de Zambrano é
verdadeira, dificilmente o município pernambucano de Águas Belas poderia ser o
ponto de referência para saber com alguma segurança o local de encontro dos
venezuelanos com os cangaceiros. Pois é sumamente ilógico, em termos
geográficos, para o viajante que parte de Aracaju e deseja seguir em direção a
Salvador, ou ao sul do país, tomar o rumo até este município pernambucano.
Talvez essa informação com tamanho erro geográfico fosse uma ação deliberada do
venezuelano, conforme o leitor pode encontrar a razão na continuidade do texto.
[18] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro,
edição de sábado, 16 de fevereiro de 1936, páginas 1 e 3. Esta reportagem foi
reproduzida integralmente em vários jornais brasileiros. Entre estes ver
“Diário de Pernambuco”, Recife, edição de sábado, 22 de fevereiro de 1936,
páginas 1 e 8.
[19] Ver os jornais “Diário de São Paulo”,
São Paulo, edição de terça-feira, 21 de fevereiro de 1936, página 3 e “Correio
da Manhã”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 23 de fevereiro de 1936,
página 4.
[20] Petit e Carmona finalizaram com
sucesso a aventura e chegaram em Washington em junho de 1937, depois de 29
meses de caminhada. Ver http://myslide.es/documents/historia-del-escultismo-venezolano.html
Sobre o
escotismo na Venezuela ver –
http://blogs.diariodepernambuco.com.br/diretodaredacao/2015/09/14/o-estrangeiro-que-peitou-lampiao/
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
http://tokdehistoria.com.br/2015/12/26/lampiao-e-os-escoteiros-venezuelanos-verdade-ou-fantasia/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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